Ser arte - Revista Esquinas

Ser arte

Por Malu Mões : janeiro 22, 2019

Foto por: Calvin Craig / Unsplash

Tudo pulsa. O ser entra em êxtase, aguardando o código que dará início a sua apresentação

Suavemente são puxadas para lados opostos duas cortinas. No meio do palco, holofotes iluminam um corpo, vários corpos, diversos corpos representados em um único. A luz amarelada e forte faz com que o corpo sue, ultrapassando seus rotineiros 36°C. A pequena gotícula que escorre pelo corpo performático demonstra a composição majoritária de água daquele organismo. Sangue, veias, tecidos, órgãos, músculos, ossos, pele. Tudo pulsa. O ser entra em êxtase, aguardando o código que dará início a sua apresentação. É movimento. Cresce e diminui, seguindo a respiração do indivíduo. A transpiração agrega-se aos diferentes cheiros, mas isso não importa. Nada importa além da função artística que aquele corpo irá exercer.

Corpos de cores, tamanhos, formatos e papéis variados. Artes dos mais diferentes tipos, linguagens, ritmos, materiais. Unidos – e separados – por um sistema biológico. Unidos por mão dadas, com dedos entrecruzados, que gritam resistência em seu ato artístico. Por pés carnudos, com a pele grossa e áspera que sustenta o peso dos corpos sobre o chão. Por músculos duros de tanto esforço que foi despendido. Fibras e tendões sendo puxados, tensionados, esticados. Os dedos tortos dos pés e das mãos, em posições que aparentam suavidade, gritam de dor, implorando para que sua dona altere a posição. O som de estalo de ossos que não aguentam mais a espera.

E inicia-se a arte. Inicia-se a dança. Inicia-se a atuação. Inicia-se a música. Inicia-se a pintura. Inicia-se o texto. Inicia-se o pixo.

Meu corpo. Tons entre laranja, rosa e branco. Pele flácida. Pouca gordura. Músculos fracos. Textura lisa. Toques sutis e desastrados. Cheiro de sabonete, misturado com o azedo do suor. Ondas do cabelo castanho curto fazendo cócegas na testa, nas orelhas e na nuca. Ossos exageradamente aparentes. Corpo torto. Coluna curvada quase aparentando o esqueleto de um dinossauro de tão exposta e inclinada. Um metro e 64 centímetros, mas a magreza exacerbada traz a sensação de ser mais longa. Magrela e frágil, prestes a quebrar.

Estou me sustentando em uma barra de inox, com os músculos tensionados, o abdômen fazendo mais força do que qualquer outra parte do meu ser, as mãos agarrando-se no objeto como se a queda fosse inevitável. A mão agarrada no pincel com toda a firmeza que possuo, para deixar o traço reto e fino. O mindinho, o anelar e uma parte da palma da mão encostados na parede rugosa e ainda branca. Essa parte da minha mão intacta enquanto os dedos que sobraram delicadamente valsam com o pincel para dar forma à criação que vem em minha mente. A baqueta está entre meu polegar e indicador – algumas farpas de madeira entram sobre a face rósea de meus dedos – enquanto meu braço movimenta-se graciosamente pelo corpo do instrumento que seguro no colo. Batidas determinadas exercidas por meu pulso. Meu corpo desorganizado, com as pernas cruzadas sobre uma cadeira de escritório de plástico. Dor na lombar, mas principalmente na junção do ombro com meu pescoço. Dor de quem pare palavras em uma tela branca de computador. Meu corpo parindo este texto. Meu corpo criando arte.

Ser arte, resistência, tensão. Tela em branco preenchida por inúmeros significados, expressões, movimentos, intenções. Objeto-estático transformado em ser vivo, objeto que outros acham que tem posse, mas que é reivindicado por sua verdadeira dona, ocupação, arte, corpo. Corpo.