Charlie Kaufman: 62 anos do cineasta que se projeta em suas criações - Revista Esquinas

Charlie Kaufman: 62 anos do cineasta que se projeta em suas criações

Por Íris Chadi : novembro 20, 2020

O roteirista de "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" desenvolve a psique de suas personagens com base em seu próprio íntimo

O roteirista Charlie Kaufman, de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, desenvolve a psique de suas personagens com base em seu próprio íntimo

Em 2008, aos 48 anos, Charlie Kaufman (Charles Stuart Kaufman, 19 de novembro de 1958)  estreava como um diretor de cinema com o filme ‘Sinédoque, Nova York’. A obra faz com que os espectadores se percam nos personagens, nos tempos, nos acontecimentos surreais, mas é complexa pelas suas interpretações e pelo fato de ter uma relação intrínseca com o próprio diretor. 

Sinédoque, Nova York

Mesmo sem entender tudo no filme, as 2 horas e 4 minutos são hipnotizantes. A história fala sobre Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman), um diretor teatral egoísta que sofre de alguma doença física que nenhum médico entende. Sua esposa viaja com a filha para a Alemanha, para seguir a carreira de artista. Caden está no fundo do poço, mas, então, recebe um prêmio em dinheiro para investir em uma peça. Ele quer fazer “algo grande, verdadeiro e duro. Finalmente colocar meu verdadeiro eu em algo.” 

Nisso, se dá o eixo central de qualquer obra de Kaufman: o mergulho na psique das personagens. Mas o que as personagens de Kaufman nos dizem sobre o próprio diretor? Caden é um homem de meia-idade insatisfeito, nada resolve seu constante incômodo – que é psicológico, porém também refletido em seu corpo, na tal doença misteriosa. Caden quer colocar seu “verdadeiro eu” em sua peça, mas ele ainda não se compreende, o que fica claro em suas esquisitas conversas com sua terapeuta, que quer se aproveitar de suas crises existenciais para vender livros de autoajuda. 

O mergulho na psique de Caden se desenrola com o desenvolvimento de sua peça, que reflete diretamente sua vida. Ele reconstrói, em um galpão, o bairro em que vive em Nova York e contrata atores para interpretarem a ele mesmo, sua segunda esposa, sua colega e outras pessoas que já fizeram parte de sua trajetória. Até aí, poderia ser só mais uma personagem de um roteirista, mas vamos voltar a 2002? 

Busca cíclica por identidade

Seis anos antes de ‘Sinédoque’, Charlie Kaufman escreveu o roteiro do filme ‘Adaptação’, sobre um roteirista, chamado Charlie Kaufman, que não conseguia escrever um filme sobre flores. O personagem, que desprezava técnicas pré-estabelecidas de roteiro, precisou recorrer a alguns clichês para se adaptar e escrever um filme que una suas ideias não ortodoxas com a comercialização de seu roteiro. Ao final, Charlie escreve sobre a própria história que acabamos de assistir. ‘Adaptação’ é um filme metalinguístico do começo ao fim e estranhamente semelhante a ‘Sinédoque, Nova York’. 

Um artista egoísta e com crises existências que luta para produzir uma obra. Mais uma vez, poderiam ser apenas personagens, mas Charlie Kaufman deu seu próprio nome ao personagem de ‘Adaptação’. Não há mensagem mais clara: Kaufman se sente como seus personagens e luta para achar seu “verdadeiro eu” a partir de suas obras. Também como Caden. 

Em ‘Sinédoque’, Caden trabalha em sua peça pelo resto de sua vida, sem conseguir nunca finalizá-la. Esse buraco interior de identidade é preenchido com mais personagens para a peça, mas nunca é suficiente. Ele cria uma peça dentro de uma peça dentro de outra peça, mas não é a solução. Caden é tão narcisista que quer subordinar todos os seus atores a viverem para fazer com que ele se encontre. 

Em ‘Adaptação’, o personagem Charlie Kaufman diz a seu irmão gêmeo: “Eu me escrevi em meu roteiro. Ele está comendo a si mesmo. Eu estou comendo a mim mesmo. É auto-indulgente. É narcisista. É solipsista. É patético.” Com essa frase, projetada a seu personagem, o diretor Kaufman está dizendo isso ele mesmo. Ele escreve um filme sobre si mesmo e isso é narcisista, assim como Caden que encarna um narcisismo tão forte que estudiosos da obra de Kaufman diriam que beira ao solipsismo, concepção filosófica de que, além de nós, só existem nossas experiências, incluindo as outras pessoas que seriam nossas projeções. 

Em sua viagem interior, Caden cria personas que refletem suas inseguranças, seus medos e seus desejos e os projeta nos outros. Mas como é dito brilhantemente por Adele, sua primeira esposa, logo no começo do filme: “Todos são decepcionantes. Quanto mais você conhece alguém, mais decepcionante ela é. Essa coisa toda do amor romântico é só uma projeção.” Caden conta com essas projeções que faz nos outros, mas ninguém poderia corresponder. [SPOILER! Pule para o próximo parágrafo] Isso fica claro na cena em que Sammy, um stalker de Caden que atua como o próprio na peça, se mata e Caden só consegue dizer que ele não entendeu a obra e fez tudo errado.  

Ao final do filme, uma das personas de Caden, talvez a mais intrigante, Millicent, que em sua peça interpreta Ellen, diz: “Cada um é o protagonista de sua própria história”. Mas será que Caden consegue entender isso e se tirar do centro de tudo? 

Resposta inalcançável de Charlie Kaufman

Ao longo do filme, ele diz várias vezes: “Eu sei o que fazer com a peça agora”, simbolizando que agora ele sabe quem é, mas ele nunca sabe de verdade – tanto que a peça não se conclui. Caden passa por um final catártico e, nesse fim melancólico, pode-se pensar que ele se redimiu e deixou seu egoísmo de lado. Mas ele acrescenta, ao final, a mesma frase de sempre, de que agora sabe o que fazer com a peça. A peça de Caden sempre será uma catarse de seu próprio ego, sempre será egoísta. Caden não mudou.  

Charlie Kaufman provavelmente também não. Em sua obra mais recente, ‘Estou pensando em acabar com tudo’ (2020), lançada pela Netflix, passa-se o filme todo acreditando que Lucy é a protagonista, mas uma atenção extra nos mostra que o longa não passa de um devaneio do namorado de Lucy, Jake, que projeta seus traumas nos outros, como Caden. 


Charlie Kaufman está por trás disso tudo, projetando sua própria personalidade nas personagens. Quanto ao significado do termo ‘sinédoque’ no filme, é possível pensar na parte do bairro de Nova York que Caden construiu, pela cidade inteira, e nas centenas de personas que Caden criou, se projetando nelas, como uma substituição de si mesmo em sua totalidade. Mas o que realmente existe é a sinédoque de Charlie Kaufman, composta por todas as personagens que o diretor criou em busca do seu “verdadeiro eu”. 

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