“O descuido com a vida no Brasil é um projeto político. Nada tem de natural”, afirma juiz do TJRJ - Revista Esquinas

“O descuido com a vida no Brasil é um projeto político. Nada tem de natural”, afirma juiz do TJRJ

Por Letícia Keller : junho 18, 2020

Em entrevista exclusiva à ESQUINAS, Rubens Casara analisa como o atual fanatismo ideológico brasileiro se configura em meio à pandemia

O Brasil apresentou pouco sucesso quanto ao controle da covid-19 durante a pandemia, sendo o segundo em número de mortos no mundo. Em meio à isso, uma parcela da população persiste em contrariar as medidas sanitárias tratando a atual conjuntura com descaso. Em entrevista exclusiva à ESQUINAS, o juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rubens Casara, explica como o contexto político vivido pela sociedade brasileira pode se desenrolar em meio à pandemia. Assim, o doutor em direito e mestre em ciências penais, fala sobre o fanatismo ideológico que atinge a população e os governantes.

ESQUINAS QUAIS SÃO OS PROBLEMAS QUE O FANATISMO IDEOLÓGICO PODE GERAR?

O fanatismo impede qualquer reflexão. Isso porque para o fanático só existem “certezas”. E a existência de dúvidas é fundamental ao desenvolvimento do pensamento e da crítica. Mesmo no campo religioso, a dúvida é fundamental à construção da ideia de fé, enquanto as certezas levam aos fundamentalismos que negam a alteridade. Pode-se dizer que as certezas são inimigas da ciência e do conhecimento. A ideologia, em sua concepção negativa, nubla a percepção da realidade, o que facilita o surgimento de fanatismos.

As certezas e as ideias inquestionáveis levam à interdição do debate. Fanatismo e ideologia, portanto, geram posturas anti-intelectualistas e a demonização do conhecimento, vistos como desnecessários e até como perigosos. O fanatismo também leva a fenômenos como o “negacionismo”. Isso porque a negação da realidade, da história e da ciência, não raro, é o mecanismo necessário à justificação de uma “certeza”, ainda que delirante, como ocorre nos casos de paranoia.

ESQUINAS O SENHOR ACREDITA QUE ESSE FANATISMO SEJA UM DOS FATORES RESPONSÁVEIS POR GERAR PROTESTOS CONTRA AS MEDIDAS SANITÁRIAS PROPOSTAS PELAS ORGANIZAÇÕES DE SAÚDE?

No atual estágio do capitalismo há um processo de dessimbolização que faz com que todos os valores passem a ser considerados negociáveis e/ou descartáveis. Valores como a liberdade, a solidariedade e a verdade perdem importância. A verdade, por exemplo, passa a ser relativizada e, não raro, substituída por versões e opiniões. Com isso, ocorre o empobrecimento do debate público a partir de uma espécie de “vale-tudo” argumentativo. Mistificadores e fanáticos dos mais variados tipos passam a ocupar o mesmo espaço na arena pública que cientistas e estudiosos. Hoje, os “negacionistas” da crise sanitária, da mesma maneira que os negacionistas da ditadura militar brasileira ou da crise climática, passam a desinformar e a reforçar preconceitos em meios de comunicação que deveriam ter por função produzir informação de qualidade. 

ESQUINAS LEMBRANDO O CASO EM QUE DONALD TRUMP SUGERIU A INGESTÃO DE DESINFETANTES, COMO O DESCUIDO NA NARRATIVA DOS GOVERNANTES BRASILEIROS PODE REPERCUTIR DE FORMA COMPROMETEDORA À SAÚDE DOS CIDADÃOS?

A estratégia discursiva do Trump não difere muito da utilizada por Bolsonaro, Duterte (Filipinas) ou Erdogan (Turquia). Todos esses governantes fazem uso reiterado de distorções da realidade e da exploração do absurdo como formas de manipulação da população e de capitalização política. O episódio do desinfetante não pode ser tido como um mero descuido. Há um método que foi utilizado nesse e em vários outros casos. Por isso, não me parece que exista “descuido” na narrativa de pessoas como Trump. Ao contrário, o que há é o uso cuidadosamente estudado de uma estratégia que passa pela manipulação dos fatos, o recurso ao absurdo para entreter e a exploração tanto de preconceito como da ignorância de parcela da população. 

ESQUINAS QUAIS OS MAIORES PROBLEMAS APRESENTADOS PELO DESCASO DOS GOVERNANTES QUANTO À PANDEMIA?

Os maiores problemas estão ligados às consequências de se tratar pessoas como objetos descartáveis. Quantas vidas estão sendo descartadas por uma opção política disfarçada de “natural”? A crise global, sanitária e social provocada pela covid-19 em 2020 revelou as conseqüências humanas das políticas econômicas neoliberais das décadas anteriores. A opção política e ideológica por processos de privatização e desmantelamento dos sistemas nacionais de cuidado e atenção à saúde produziu mortes e potencializou o sofrimento da população. A aproximação entre neoliberalismo e necropolítica tornou-se ainda mais evidente.

Para além das mortes inevitáveis em um contexto de pandemia, o que ocorre no Brasil é a naturalização de mortes evitáveis. O descuido com a vida no Brasil é um projeto político. Nada tem de natural.

ESQUINAS COMO O SENHOR ENTENDE OS CONSTANTES ATAQUES À IMPRENSA E AOS AGENTES DA ÁREA DA SAÚDE?

Não ter limites é uma característica das sociedades atuais. Tudo aquilo que representa um obstáculo aos desejos dos detentores do poder político e do poder econômico passa a ser tratado como algo a ser eliminado. Isso vale tanto para parcela da imprensa quanto para agentes da área de saúde que questionam o projeto de poder que muitos aderem sem a necessária reflexão. Mesmo os governadores, que defenderam a necessidade da quarentena diante da pandemia, passaram a ser vistos como inimigos daqueles que defendem a primazia dos interesses do mercado em detrimento da vida dos cidadãos.

ESQUINAS QUAIS SÃO SUAS PREVISÕES E/OU CONCLUSÕES QUANTO AO FUTURO DO BRASIL APÓS A PANDEMIA?

O mundo pós-pandemia vai ser definido a partir da resolução de uma questão prévia: a manutenção ou não da racionalidade neoliberal. Insistir na naturalização do modo de pensar e atuar neoliberal, que considera a busca do lucro e de vantagens pessoais o único objetivo “racional”, e ao mesmo tempo em que trata as pessoas como objetos negociáveis, pode levar a dois horizontes catastróficos, apresentados como naturais e inevitáveis, como toda manifestação neoliberal.

Nos países em que o pensamento autoritário se instaura sem maiores dificuldades, nos quais o conhecimento e a ciência são demonizados enquanto a violência é sacralizada, as mortes causadas pela covid-19 são tratadas como positividades, da mesma maneira que a eugenia era tratada como uma positividade pelos nazistas no século passado. Com isso, nos países de baixa densidade democrática, haverá o aprofundamento de um paradigma repressivo de governo baseado no poder disciplinar, no obscurantismo e na naturalização de mortes evitáveis em nome dos interesses de poucos.

Já em países que conseguiram construir uma cultura minimamente consistente de respeito aos direitos e garantias fundamentais — vida, integridade, saúde, trabalho etc.—, a lógica neoliberal atuará a partir de mecanismos e dispositivos mais engenhosos e sofisticados. Nesse novo paradigma, a ideia de segurança sanitária passará a ocupar papel de destaque como justificativa para o afastamento de direitos fundamentais como o da intimidade e o da inviolabilidade frente ao Estado. O medo da morte diante do risco de novas pandemias fará com que conquistas da civilização, que representavam limites à ação do Estado, sejam deixadas preventivamente de lado. No lugar do poder disciplinar, a opção preferencial será pelo recurso ao psicopoder.

A racionalidade neoliberal, portanto, fará com que se insista em fazer do Estado um instrumento a serviço do mercado e dos detentores do poder econômico. Assim, será prestado auxílio financeiro a empresários e a instituições financeiras e a liberdade dos cidadãos será restrita em nome do medo da contaminação. Além disso, espaços de intimidade serão eliminados, reatualizando o poder disciplinar e aumentando o controle biopolítico sobre a população.

 Mas, diante de um quadro de crise, também se pode construir saídas novas e originais, revolucionárias, a partir de um outro modo de ver e atuar no mundo. Apresentar caminhos alternativos para o mundo pós-pandemia é um desafio, mas também um dever ético. Construir coletivamente um outro mundo possível, em reação ao qual cada pessoa se perceba responsável, ainda é um sonho, mas pode se tornar realidade.