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Por Susana Terao Edição #63

Censura e obscenidade

No século XXI, a arte ainda encontra reações conservadoras em busca de limitar suas temáticas e a interação com o público

A nudez artística tem sido um dos principais alvos de boicote por grupos conservadores no Brasil atual. Alguns representantes do meio artístico receberam acusações de pedofilia, processos e até classificação de pornografia. Tal repercussão se deu, principalmente, como resultado de distorções motivadas por interesses políticos, uma onda reacionária e viralizações descontextualizadas nas redes sociais.

Os artistas Wagner Schwartz e Maikon K foram alvos dessa manipulação pejorativa, por apresentarem nudez em suas performances. Maikon K teve sua performance “DNA de DAN”, participante do projeto Palco Giratório do SESC em Brasília, em julho de 2017, interrompida e teve seu cenário rasgado pela Polícia Militar do Distrito Federal. A PM justificou a intervenção alegando o recebimento de denúncias e afirmou que cumpria o Código Penal. “Eles me deram uma chave de braço, fui colocado atrás do camburão e levado escoltado com as sirenes ligadas. Precisei assinar um termo circunstanciado de ato obsceno, caso contrário, eu passaria a noite na cadeia e só sairia após um delegado me ouvir” relata K. A aplicação de termos circunstanciados se dá para infrações de menor valor ofensivo, que não demonstram necessidade de ações penais.

Por sua vez, em setembro de 2017, Wagner Schwartz participava do 35º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, com sua performance “La Bête”, trabalho que dialoga com a série “Bichos”, de Lygia Clark, concebida no início da década de 1960. Devido a um vídeo publicado nas redes sociais, que mostrava a interação de uma criança tocando na mão, pé e tornozelo do artista, Schwartz foi acusado de pedofilia. Uma manifestação presencial em boicote à performance ocorreu também em frente ao MAM nos dias seguintes à polêmica.

O Código Penal, de 1940, pode ser interpretado de diversas maneiras. As interpretações, evidentemente, variam de acordo com os costumes e a moral de cada época. Na maioria das vezes, cabe ao juiz analisar cada caso concreto de acordo com o contexto em que está inserido. O contexto artístico, no campo jurídico, é visto com algumas ressalvas. Para ser considerada como ato obsceno ou atentado ao pudor, é necessário que essa manifestação seja de cunho explicitamente sexual.

Em 2017, a apresentação de Wagner Schwartz no MAM causou polêmica pela interação com o corpo nu
Caroline Moraes

Ataques digitais

Ambas as performances repercutiram e foram atacadas nas redes sociais, ambiente em que foram distorcidas. No sentido original, “La Bête” é uma performance que, assim como “Bichos” de Lygia Clark, precisa da interação do público para existir. A nudez do performer está intimamente relacionada em mostrar as articulações do artista tal como as dobradiças que unem as placas de metal das esculturas das obras de Clark, tornando-as articuláveis. Já em “DNA de DAN”, pensava-se em um corpo despido de códigos sociais, como algo que está sendo gerado, mostrando-se frágil e exposto. “Com o público presente no contexto da performance, há reflexão. Com o outro público que recebeu apenas um recorte manipulado, há confusão”, comenta Schwartz.

Outro alvo de boicote foi a “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, promovida pelo Santander Cultural em Porto Alegre. A exposição queria questionar o museu enquanto instituição que carrega padrões heteronormativos e patriarcais, foi cancelada após receber críticas contra as obras expostas, dentre elas, acusações de zoofilia e pedofilia.

Márcio Antônio Campos, editor de opinião do jornal Gazeta do Povo, conta que o ocorrido com o “Queermuseu” não se configurou como censura pois não envolveu uma intervenção da Justiça forçando o cancelamento da exposição. O que ocorreu, segundo ele, foi uma movimentação de pessoas insatisfeitas que fez o centro cultural recuar.

Em contrapartida, a Escola de Artes Visuais, do Parque Lage, no Rio de Janeiro, lançou uma campanha de arrecadação coletiva na internet para levantar 690 mil reais e realizar a exposição no Rio de Janeiro, onde também foi cancelada pela gestão municipal de Marcelo Crivella. O objetivo da campanha foi expor, em junho de 2018, as 263 obras que compõem o “Queermuseu” no Parque Lage. No site de arrecadação coletiva Benfeitoria, onde foi feita a campanha para o financiamento, justifica-se tal movimentação em prol da liberdade de escolha, expressão e opinião e como uma forma de reparar um dano causado ao patrimônio artístico e cultural brasileiro.

Caça aos artistas

Segundo Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora geral do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da Universidade de São Paulo (USP), o que acontece hoje em dia é a chamada “censura togada”. Essa censura é regida por processos judiciais. Não há mais um órgão estatal censurando, mas sim instituições, muitas vezes privadas, que agem para reprimir artistas cujo trabalho é considerado obsceno.

Sobre as críticas feitas a algumas obras, Costa conta que um limite possível para arte seria o da opinião do público e também a proibição das obras que comprometam a dignidade humana. “Uma obra declaradamente racista ou que defenda pedofilia pode ser proibida por lei ou pela Justiça. Acho que há dois tipos de limites, os éticos e os legais, que não necessariamente se confundem”, observa.

O artista paranaense Maikon K realiza performances que por vezes causam discórdia
Lauro Borges

O porquê de a arte ser um alvo tão recorrente da censura é bem extenso. “O caráter transgressor da arte somado à forma direta que interage com a sensibilidade do público, causa incômodo. Além disso, há uma forte tentativa em calar e deslegitimar um grupo de contestadores que têm o poder de denunciar sistemas perversos”, indica a pesquisadora. Para ela o que aconteceu foi uma tentativa muito forte de amedrontar as instituições, os artistas e o próprio público.

Frente à represália ao “Queermuseu” e às performances, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), ao abrir a exposição “Histórias da Sexualidade”, impôs uma classificação restritiva aos visitantes, que após divulgação de nota pelo Ministério Público Federal, afirmando que “nem toda nudez possui caráter sexual ou finalidade lasciva”, se tornou apenas indicativa. Os menores de idade poderiam visitar a exposição com a autorização dos pais, e esse público configurou 15% do público total. Fábio Cypriano, crítico de arte do jornal Folha de São Paulo, conta que a tentativa de amedrontar funcionou com o Masp, já que o museu se acovardou e perdeu a oportunidade de se afirmar enquanto instituição que propaga a cultura e promove debates.

Essa atitude contra a nudez artística também é encontrada no Facebook. Em dezembro de 2017, a rede social proibiu a postagem de Laura Ghianda contendo a imagem da clássica estátua de “Vênus de Willendorf”, representação do nu feminino datada entre 27 mil e 30 mil anos atrás, justamente por apresentar nudez. Após críticas à atitude de censura, a imagem foi autorizada e a rede afirmou que há exceções para estátuas. No entanto, a restrição se repetiu em março de 2018 com o quadro do francês Èugene Delacroix “Liberdade Guiando o Povo”, pela presença de seios à mostra. Novamente, representantes do Facebook se pronunciaram e foi autorizada a circulação da imagem pela rede.

Diante de todas as polêmicas que envolveram o cenário artístico, a justificativa era o comprometimento da moral dita ameaçada pela nudez. Tratar sobre a nudez virou um tabu por ter diversas conotações dependendo do contexto em que está inserida.

Os artistas, ao explicarem a abordagem de suas performances, mostraram que não havia o objetivo de chocar ou polemizar o corpo nu. A polêmica é criada a partir do momento que a nudez proposta não está a serviço do mercado e, por isso, é vista como afronta. A nudez pornográfica, por definir seu campo e seu público, não causa tanta polêmica quanto a nudez artística em outros contextos. O corpo nu inserido em performances, por não explicitar qual seu sentido, causa ainda mais esse desconforto da indefinição. Associar tais manifestações artísticas à pornografia é ignorar o contexto das obras sem fazer uma análise crítica dos objetos.

O próprio Maikon K considera a performance “Ânus Solar” obscena e não a realizaria ao vivo
Lauro Borges

O problema, aponta Maikon K, não é a oposição do público à nudez e sim ao que é feito com ela em diferentes contextos. É com base nisso que os artistas alvos da censura em 2017 realizam em março de 2018 a peça “Domínio Público”. Maikon K conta que eles pretendem utilizar toda a experiência vivenciada para transformá-la em processo criativo. “Estamos buscando como revelar as entranhas desse mecanismo que tritura nossas ideias. É um encontro para refletir, processar e digerir isso para então encerrar o assunto e começar uma nova etapa”, diz. Os quatro artistas que farão o espetáculo são Wagner Schwartz, Maikon K, Elisabete Finger (coreógrafa e mãe da criança que interagiu com Wagner no MAM) e Renata Carvalho (travesti acusada de desrespeitar crenças religiosas com a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, em São Paulo).

Maikon K ainda ressalta que a definição de obscenidade é algo complexo. Ele afirma que, dentro de um contexto artístico, no qual se promove um sentido e reflexões são abertas, não se pode etiquetar exposições ou performances como algo simplesmente “obsceno”.

O assunto não está encerrado e dificilmente o será. A arte e a censura sempre continuarão batendo de frente e a sexualidade e a nudez continuarão sendo instrumentos e fonte de inspiração para a arte. Na 33ª Bienal, que ocorrerá de 7 de setembro a 9 de dezembro de 2018, a temática da sexualidade e arte voltará à tona. O Brasil terá mais uma vez a oportunidade de refletir sobre a quantas anda sua moral e sua sensibilidade estética.