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Por Júlia de Oliveira Edição #63

Enrolados para sempre?

Como a indústria de cosméticos se beneficia do discurso pró cabelos cacheados e crespos

“Se você não fosse meu, eu não seria tão eu!”. O comercial lançado pela Natura em 2011 gera estranhamento: desde quando a mídia faz propagandas promovendo a autoestima? Carol Soares, embaixadora da #Todecacho, linha especializada em cuidados capilares Salon Line, nem sempre teve uma boa relação com seus crespos. Em sua família, todos tinham o cabelo alisado e assim ela começou a alisar seus fios aos nove anos de idade.

Essa padronização da beleza em torno do alisamento é uma prática difundida na sociedade brasileira tanto pela mídia quanto pela indústria. O American way of life, disseminado na década de 1940, ia além dos novos eletrodomésticos e carros. Estrelas de Hollywood ditavam a estética a ser seguida e serviam de inspiração para estilo de roupa e textura das medeixas. Em 1960, foram criados cremes para alisar roupas que também serviam para os cabelos e se tornaram febre de vendas.

Com isso, as pessoas entraram numa tentativa contínua de alcançar padrões estéticos inatingíveis. “Comecei a me tornar escrava da chapinha. Acho que a partir do momento que isso acontece nós perdemos nossa liberdade, nos tornando infelizes com nós mesmos”, diz Soares. Segundo uma pesquisa feita pela Kantar Worldpanel, que analisa os padrões de consumo, 51,4% da população brasileira apresenta variações de cabelo cacheado e crespo. A aceitação do cabelo natural e o consequente reajuste da autoestima nos últimos anos são um marco na história da beleza.

Essa marginalização do crespo está ligada a questões histórico-sociais, como os casos de racismo no Brasil. “Desenhos tipo o da Barbie mostram a garota com o cabelo bagunçado, na forma de um black power. Aí quando ela vai arrasar na noite, faz uma progressiva”, aponta Tasha Okereke, influenciadora de moda e cocriadora com a irmã gêmea, Tracie, do projeto Expensive Shit, blog que promove a autoestima de mulheres jovens, negras e periféricas.

O mercado da beleza e a mídia reforçam os estereótipos que associam os fios lisos ao padrão desejável
Júlia de Oliveira

David Carvalho, dono do salão Beleza Afro e expert em cabelos cacheados e crespos há dezoito anos, explica que, com o uso da progressiva a partir de 2003, alisar os cabelos se tornou algo acessível e prático. “Antigamente, a pirâmide da moda vinha de cima para baixo”, afirma. O exemplo pode ser aplicado no que se chama de “hierarquização capilar”: cabelos lisos no topo, ondulados no meio, cacheados e crespos na base.

Segundo um estudo do Google BrandLab em São Paulo, as buscas por transição capilar cresceram em 55% nos últimos dois anos. Por sua vez, o interesse por cabelos afro cresceu 309%, superando pela primeira vez a busca pelos lisos. Não tardou para as empresas notarem a lucratividade dos fios naturalmente curvilíneos. Uma das primeiras foi a Dove, com o projeto “Retratos da Real Beleza” de 2013. Ela lançou um filme em que mulheres são representadas por um artista forense segundo as descrições que fazem sobre si mesmas e depois retratadas pela descrição de outras pessoas que a conhecem. A conclusão é que elas tinham uma visão distorcida da própria imagem.

Contudo, propagandas como essa não configuram uma “humanização” das empresas. E é no meio desse jogo mercadológico que surgem novas peças como a #Todecacho. Kamila Fonseca, gerente de Marketing da Salon Line, revela que a linha foi lançada por conta de um site para blogueiras escreverem sobre suas experiências com os cabelos crespos e cacheados. O público começou a pedir produtos especializados e, em 2015, foi atendido com o lançamento de cinco itens da marca.

Para Okereke, o papel da mídia e da indústria é atender às demandas da população que busca atingir com seus produtos. Já Fonseca afirma que a #Todecacho deseja não apenas fazer produtos, mas também trabalhar ativamente na aceitação do cabelo crespo no País. Tanto o pensamento da influencer quanto o da diretora de marketing parecem consoantes ao excerto da seção “Crenças”, do relatório anual da Natura: “A busca da beleza, legítimo anseio de todo ser humano, deve estar liberta de preconceitos e manipulações”. Quem sabe estejamos no caminho para que esse desejo, outrora utópico, consolide-se como verdade.