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Por Fernanda Silva, Gabrielle Viana, Carol Vbo, Isadora Pinheiro, Matheus Moreira, Samantha Soares, Téo França e Ana Clara Muner Edição #59

Crianças condenadas

Como a mudança da FEBEM para a Fundação CASA  revela vestígios de um sistema que continua violento e punitivo

“Mão pra trás e cala a boca, senão apanha”. Essas foram as primeiras palavras que Paulo* ouviu ao ser preso e levado para a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) hoje reformulada e chamada de Fundação Casa. O espancamento foi o cartão de boas-vindas. Aos 33 anos, o ex-interno relata que foi detido aos 15 anos, em uma época que, segundo ele, o sistema era mais violento do que o atual. A influência veio pelos amigos do bairro, na periferia da zona sul de São Paulo, onde mora até hoje. O crime era sempre o mesmo, sequestro relâmpago. Aos 17 anos foi internado pela primeira e única vez. Durante os seis meses e vinte dias em que esteve preso passou por três unidades diferentes.

O cotidiano entre os colegas de cela era regido pelas leis da bandidagem, muitas das quais são impostas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). De acordo com o entrevistado, caso o interno fosse um delator ou tivesse se envolvido com delitos sexuais, como estupro, ficava no “seguro”, uma gíria que, simbolicamente, marca os jovens que serão os primeiros que “vão levar facada” ou sofrer maus tratos no próximo momento de revolta do grupo. O ex-interno conta que um dia sua mãe desabafou com ele que sofria revista vexatória para ir visitá-lo. Esse foi um dos motivos para o início de uma grande rebelião na unidade do Brás: “A humilhação da minha mãe gerou revolta, começamos a tocar fogo, chamar o diretor, sequestrar o funcionário e faca na garganta”, conta.

Quando o assunto são os defeitos do sistema carcerário Paulo* aponta o despreparo dos funcionários no tratamento com os adolescentes. Mas, apesar das lembranças, a expressão do seu rosto ganha leveza ao falar sobre os três cursos que fez na primeira unidade em que esteve, onde terminou o primeiro ano do Ensino Médio. Quando o sistema vigente ainda era o da FEBEM, os internos passavam o dia sem realizar qualquer exercício coordenado e sem atividades educativas obrigatórias, era bastante similar aos presídios. A unidade na qual o interno estudou era uma exceção da época.

Para Paulo*, o novo modelo, chamado Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA), ‘‘A disciplina é o fator principal que rege os dias dos internos’’, segundo o diretor da unidade de Jundiaí.

É rápida, contundente e compreensível a fala de Paulo* quando questionado sobre sua melhor lembrança da Febem: “nenhuma”, já que para o ex-interno o modus operandi segue, em linhas gerais, incorrigível.

Os internos da Fundação CASA conversaram com a equipe da Esquinas / Foto: Ana Clara Muner

A transição

Operando desde 1967 no Estado de São Paulo, a FEBEM historicamente mostrou-se um ambiente problemático. Enfrentando condições semelhantes às das prisões, como superlotação e maus tratos, as unidades diversas vezes, foram alvo de rebeliões e conflitos internos. De 1998 para os dias atuais aumentaram os números de ocorrências, e só em 2003 foram contabilizadas 80 revoltas.

Para combater este quadro, em 2005 a advogada Berenice Gianella, atual presidente da instituição, arquitetou o projeto de transformação da FEBEM em Fundação CASA. Sua primeira ação foi reunir os funcionários, ouvir as maiores dificuldades que enfrentavam e montar o planejamento para a reforma. Em nenhum momento os internos foram chamados para fazer suas críticas ou opinar sobre as mudanças.

A transição aconteceu de maneira muito rápida, afirma a diretora regional da Fundação CASA, Magali Taina: “Entendemos que estamos em processo e nós reconhecemos o que aconteceu. Havia uma cultura de violência que não vai mudar rapidamente”, reconhece.

Ao tentar sintetizar a transformação, Magali ressalta os termos “enfrentamento e diálogo”: uma vez que enfrentam diariamente a violência e o preconceito da sociedade, dialogando diante de assuntos delicados e buscando mudanças factíveis.

Aparências

Houve uma descentralização da Fundação CASA, que tem atualmente 149 unidades ao longo da capital, diferente da época da FEBEM, quando eram poucas unidades. Segundo Magali, a violência contra os menores também teve mudanças: “Antigamente o funcionário descia a ripa nos meninos e não acontecia nada, hoje ele pode ser processado”, conta.

Segundo o governo de São Paulo, observa-se grande redução nos casos de revoltas, se comparado com os tempos da FEBEM. Isso pode indicar uma melhora efetiva no sistema ou uma maior repressão no tratamento dado aos adolescentes. João*, de 26 anos, cujo irmão é interno há dez meses na unidade do Brás fica com a segunda explicação. conta que “Lá só tem tapa na cara, ninguém tá nem aí pra nada não. Eles [os detentos] só não contam pras mães”. É possível notar grande divergência entre os relatos de familiares e de funcionários sobre o ambiente interno da instituição, principalmente relacionados aos casos de violência, como conta Danilo*, padrasto de um interno da Unidade da Vila Maria: “Só mudou o nome, é tudo fantasioso; colocaram uma aparência bonita na porta, mas lá dentro é tudo igual” diz. “Funcionário só respeita na frente [da família], quando a gente vira as costas é pancada igual antigamente”.

Sob vigilância

Dentro da Fundação, os internos seguem uma rotina rígida. Da hora em que acordam até a hora que vão dormir, passam por aulas, banho, refeições e limpeza do ambiente, tudo com tempo definido.

As unidades da região metropolitana de São Paulo oferecem cursos profissionalizantes, como os de pizzaiolo, padeiro e garçom. Idealizados para que os internos consigam se inserir no mercado de trabalho, porém na prática esta inserção se mostra muito mais complexa. São ocupações em que não há grande possibilidade de crescimento e o salário, muitas vezes, não é suficiente para as ambições ou a qualidade de vida esperada pelos jovens. Desta forma, o retorno para o crime acaba se tornando o caminho mais fácil e rentável.

Todos os ambientes, incluindo banheiros e quartos, são vigiados dia e noite através de janelas ou portas vazadas. Uma das finalidades desse modelo é evitar relacionamentos homossexuais entre os jovens, que não são permitidos pela direção e pela larga maioria dos detentos. A separação dos quartos, de maneira seletiva, tenta deixar os jovens gays com outros considerados menos violentos.

No campo da saúde, os diretores atestam que há médicos nas instituições duas vezes por semana, e que os jovens recebem atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Da boca dos familiares, porém, ouvimos, quase em uníssono, que o tratamento dado aos adolescentes não se parece em nada com o relatado: “Não vejo ninguém ser bem tratado nesse lugar, eles [os internos] não falam dos maus tratos porque têm medo”, afirma Jana*, 31 anos, mãe de um interno. Danilo* conta que seu enteado ficou doente e não recebeu atendimento médico decente, pois não havia profissionais habilitados no local.

Eliana*, uma senhora que visita o neto toda semana, não acredita na eficácia da Fundação CASA, “Não deixam mais pai e mãe bater nos filhos quando são pequenos, mas aqui não tem mais jeito de consertar. O moleque sai para o Dia das Mães, assalta e mata três fulanos. Se nosso país tivesse mais educação, respeito e saúde, a realidade seria outra”, critica.

As grades, cercas e arames se destacam na Fundação CASA de Jundiaí / Foto: Ana Clara Muner

A realidade

Quando discutimos a questão do jovem infrator, é importante lembrar a situação vivida pelos adolescentes em conflito com a lei. Segundo o Panorama Nacional do Conselho Nacional de Justiça, cerca de 57% desses meninos não frequentavam a escola antes de ingressar nas unidades. Muitos vêm de famílias desestruturadas, têm problemas com psicoativos e se envolvem com o crime, muitas vezes, para se sustentar. Os jovens são mais vítimas da criminalidade do que autores dela. De acordo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), no Brasil, entre 2002 e 2012, 33 mil adolescentes entre 12 e 18 anos foram mortos, em sua maioria, negros e pardos, pobres e moradores de periferia.

A relação que a Fundação CASA estabelece com assuntos do sistema carcerário pode ser vista de forma moldada pelos modelos midiáticos. De acordo com Brenda*, ex-integrante do Primeiro Comando Capital (PCC), que atualmente cumpre pena condicional e faz trabalho voluntário de alfabetização na Unidade Vila Maria da Fundação CASA, a realidade é ludibriada pela mídia.

Pessoas como Brenda*, que acompanham de perto o sistema carcerário, veem o modo falho e ineficaz com que o Estado vem tratando seus jovens, constituído de várias lacunas. Segundo a ex-detenta, o crime organizado carrega para dentro das facções e grupos criminosos, crianças e adolescentes que não têm estrutura familiar, psicológica e educacional. Ela, ainda, exemplifica como funciona essa transferência de “responsabilidade” do Estado, quando afirma que, “várias mães são obrigadas a deixar os filhos sozinhos ou, em muitos casos, com o mais velho que cuida dos menores porque não tem creche. A minha irmã mais velha cozinhava para nós, porque a minha mãe precisava trabalhar. Quem é que vai proteger esses meninos?”, questiona.

Para Brenda*, o governo falha quando não dá o suporte legal necessário para as famílias que, na falta de assistência governamental, se enxergam na marginalidade: “Todo traficante é chamado de pai, toda traficante é chamada de mãe”. Chefes do crime usam seu poder e dinheiro para amparar essas crianças que, assim como eles, foram negligenciados pela sociedade, conquistando seu espaço na comunidade periférica. Quando o Estado deixa de proteger esses jovens das situações de desigualdade social, indiretamente os aproxima da violência e, uma vez lá, estão propensos a serem presos.

Mesmo encarcerados, os internos ainda contam com os direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cujo artigo 94 deixa claro que eles devem ter acesso aos objetos necessários para a higiene e aseio pessoal, como habitação em condições adequadas de salubridade, escolarização, profissionalização, além da possibilidade de realizar atividades culturais, esportivas e de lazer.

Porém, isso não corresponde à realidade da larga maioria das unidades da Fundação CASA de São Paulo, onde encontramos jovens sem cursos profissionalizantes, aulas adequadas e sem produtos de higiene necessários. Um exemplo disso é a Unidade Vila Maria. Brenda* afirma que muitos internos são malcheirosos, porque sequer têm acesso à produtos básicos necessários, como pasta de dente.

A proposta ressocializadora da Fundação CASA não é atendida quando temos esse quadro de defasagem de bens primordiais. O próprio ECA é visto como falho pela advogada pecializada em criminalidade juvenil, Fabiana Saenz. Para ela o estatuto se mostra ineficaz na solução de problemas que envolvem os seus tutelados, enquanto pregam medidas de proteção e controle social. E que o perfil desses infratores só poderá ser mudado quando o Estado perceber a necessidade de políticas públicas, educação e melhora na saúde para jovens marginalizados. “É muito difícil ensinar alguém a viver ao privar este alguém da liberdade.”

Foto: Ana Clara Muner

Para inglês ver

A mídia, muitas vezes criticada por ser sensacionalista, colabora para criar o estigma do menor criminoso, sendo que a criminalidade para alguns jovens é algo bastante comum: “o adolescente está em uma fase de transição, da infância para a vida adulta, em uma condição conflituosa”, explica a advogada. Vale lembrar o padrão de crimes cometidos: atos contra o patrimônio (roubos sem porte de arma) correspondem a 52% da média nacional; em segundo lugar estão os crimes relacionados ao tráfico, segundo o Panorama Nacional do Conselho Nacional de Justiça. Em contrapartida, o número de adolescentes que cometem crimes violentos é irrisório, sendo justamente estas infrações que causam tamanho alarde, por serem as únicas reportadas pela mídia.

A própria Fundação CASA participa desse sistema excludente. Criada para “atender os jovens”, a instituição ainda segue mais às leis da prisão do que sua proposta de inclusão social, deixando de lado necessidades como a de sociabilização. Saenz explica que o tratamento de adolescentes criminosos tem que ser diferenciado: “O Artigo 228 da Constituição Federal é uma cláusula pétrea, por isso não pode ser alterado, porque a infância é um direito constitucionalmente garantido”. O sistema prisional, que não funciona para adultos, fatalmente não funcionará para crianças.

Em nossa visita à Fundação CASA, notamos que a maior parte dos internos e funcionários é contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. “Eu não concordo com a redução, vamos acabar sofrendo ainda mais preconceito se fomos para a prisão. Se formos fichados, quem vai dar emprego para quem roubou?”, questiona Lucas*, interno da Fundação CASA de Jundiaí que sonha em apagar o passado da memória.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) de setembro de 2015, a aprovação desse Projeto de Lei tem, pela população, aprovação de 83%. Entretanto, as privatizações do sistema carcerário e a má representação midiática das realidades periféricas brasileiras e dos conjuntos prisionais sugerem o aumento do interesse em superlotar cadeias com crianças que têm poucas oportunidades. Medidas como essa parecem ser coisa para inglês ver, limitando o diálogo e mitigando a busca por solução palpáveis e critérios a longo prazo.

Quando perguntados sobre os delitos, os entrevistados concordam que essa vida [do crime] não compensa. Os que ficaram, ou foram presos ou estão mortos. Segundo Lucas*, nem todos os internos da Fundação conseguem enxergar a “oportunidade de ouro” cedida a eles: “Tem muitos que não querem sair desse meio [com envolvimento criminal], não percebem que estão jogando a vida no lixo”.

Durante a apuração dessa reportagem, a fuga de 132 internos de seis unidades da Fundação Casa levou a Secretaria de Segurança Pública a autorizar Policiais Militares a fazerem o conhecido “bico oficial”.

Hoje, apesar das mudanças ocorridas da FEBEM para a Fundação CASA, não se pode dizer que a base do sistema carcerário tenha mudado. A precarização da educação no país, que pode ser exemplificada com o anúncio do fechamento de 94 escolas estaduais no estado de São Paulo e o projeto para a redução da maioridade penal, acaba fazendo com que jovens pobres, normalmente negros (pretos e pardos), da periferia, continuem sendo mandados para prisões que muitas vezes não têm medidas educativas efetivas.

Um dos internos da Fundação CASA de Jundiaí afirma que a mudança da FEBEM para Fundação CASA foi boa. ‘‘Antes tinha várias rebeliões, era muita bagunça. Hoje fazemos cursos para termos melhor oportunidade de vida, depois de estarmos aqui a gente começa a ver nossa capacidade”. Algo que pudemos reparar é que as opiniões de familiares e de ex-inernos acabam sendo, quando se trata da efetividade da Fundação CASA.

Lucas* que conseguiu um lugar nas Olimpíadas de Conhecimento em São Paulo, quer ser engenheiro quando sair da Fundação e diz que fará de tudo para que esse sonho se realize. “Eu e os quatro que passaram nas Olimpíadas, quando conseguimos fazer algo assim, sinto que sou capaz de coisas muito maiores”.

Os jovens brasileiros não podem perceber o valor social que têm quando já estão dentro do sistema carcerário. Conversando com atuais internos, a injustiça social fica ainda mais nítida. São meninos que passam por situações violentas dentro dessa estrutura e que tentam dar vazão à sua voz mesmo sendo coagidos.

*Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.