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Por Fatime Ghandour, Luísa Cerne e Maria Laura Saraiva Edição #66

Filantropia secular

Com quase 460 anos, a Santa Casa de São Paulo é uma das instituições médicas mais importantes da história do País

Ao longo de mais de quatro séculos, a Santa Casa de São Paulo, localizada na Vila Buarque, mantém suas portas abertas para aqueles que necessitam apoio médico. Mensalmente, 39 mil pessoas em situação de emergência são recebidas e são realizados, em média, 100 mil atendimentos ambulatoriais e 2200 cirurgias. A instituição abriga, ainda, desde 1963, a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), cujo diretor, Paulo Carrara, diz se preocupar em “não formar apenas profissionais, mas pessoas”. Com mais de quatro séculos e meio de história, o maior hospital filantrópico da América Latina segue tentando superar uma grave crise financeira.

A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo nasceu em 1562, oito anos após a fundação da cidade pelos jesuítas, e cresceu junto com a paulicéia. Contrariando o padrão vigente à época, a Coroa Portuguesa estabeleceu a laicidade da instituição. A grandiosa construção é obra do arquiteto italiano Luigi Pucci, o mesmo responsável pelo projeto do Museu do Ipiranga. Nela, a Irmandade abrigou desde soldados da Revolução Constitucionalista de 1932 até a população carente de São Paulo que não podia pagar por saúde, oferecendo-lhe tratamentos gratuitos. “Até o começo do século passado, o Brasil dependia basicamente das Santas Casas, não havia estrutura de saúde pública”, afirma o provedor do hospital, Antonio Penteado.

A instituição construiu uma reputação de tradição em saúde e em ensinamento. Foi na Santa Casa que se originaram duas das faculdades de Medicina mais importantes do Brasil: a Universidade de São Paulo (USP) e a Escola Paulista de Medicina (Unifesp). 

O Hospital Central conta com o Museu da Santa Casa de São Paulo (MSC-SP). O acervo, formado em 2000, e inaugurado em 2001, resgata a história da  instituição por meio de objetos cerimoniais, religiosos, documentos textuais e fotográficos, além de esculturas, mobiliário de época e 189 pinturas de artistas como Benedito Calixto e Tarsila do Amaral. Grande parte desses objetos foram doados pela equipe médica ou por pacientes. Outros destaques do MSC-SP são os equipamentos médicos, como macas e aparelhos usados em exames e cirurgias e remédios que datam do século 19. O local possui um cuidador responsável por contar as histórias que ali ficaram e por guardar os séculos da Santa Casa nos dois pequenos andares do museu.

Muitos pacientes utilizam o hospital há mais de uma década, como Roseli Gonçalves, 51 anos, que o frequenta há 16 anos. Em 2014, foi atendida ali devido a uma infecção no trato intestinal. Ela percebeu que o atendimento melhorou consideravelmente com o passar dos anos. “A Santa Casa para mim é uma mãe. Apesar das dificuldades que enfrenta por falta de recursos, continua com suas portas abertas para receber todos com muito carinho”, afirma. Para Gonçalves, o destaque da instituição é o fato de que lá são realizados tratamentos ambulatoriais, exames e internação.

A Santa Casa detém o segundo maior número de atendimentos dos hospitais de São Paulo e é dona do maior “pronto-socorro de portas-abertas” da América Latina, ou seja, o paciente não precisa de RG em mãos para abrir ficha. A Irmandade paulistana conta também com o Hospital Santa Isabel, divisão particular que arca com parte dos custos dos setores que fazem atendimento gratuito. A instituição, hoje, é principalmente financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo Governo do Estado de São Paulo, mas sofre com grandes problemas orçamentários.

Segundo seu provedor, ela opera, atualmente, com cerca de metade do orçamento de seis anos atrás, enquanto a demanda pelos seus serviços só tende a aumentar. Apesar disso, Penteado diz que não há uma crise generalizada na saúde pública: “O SUS funciona, a população é atendida. Precisamos nos orgulhar”.

A diretora executiva, doutora Maria Dulce, aponta a reinvenção de todas as áreas de atendimento como solução possível para reduzir o orçamento. “Hoje, os pacientes passam menos tempo internados, mas a população triplicou. Estamos mudando a estrutura para que ela fique mais sustentável e acolhedora”.

Além da importância imensurável para a saúde pública da cidade a instituição tem grande papel na formação de médicos bem preparados. Para o estudante de Medicina, Ayrton Piassi, de 22 anos, o hospital é sua segunda casa. “Minha mãe, que também é médica, fez residência em Cardiopediatria aqui na ‘Santa’, e, muito por influência dela, vejo a Medicina não apenas como curar o paciente, mas como algo muito além: acompanhá-lo, entender sua realidade, aprender com ele e ensiná-lo também”, diz.

Ele contrapõe a ideia de muitos médicos que, graças aos avanços tecnológicos, não julgam necessário tocar nos pacientes, pedindo logo uma bateria de exames. Segundo Piassi, isso é algo que a faculdade ensina: a escutar, tocar, a olhar para a pessoa de quem você está cuidando e a ter empatia, sendo o contato com o paciente a principal diferença da Santa Casa quando comparada a outras instituições.

No primeiro ano, os alunos são inseridos em enfermarias para conversar com os pacientes, perguntar como se sentem, entender o porquê de estarem internados; logo aprendem a fazer uma anamnese, a primeira consulta e ponto inicial do diagnóstico. O contato precoce é algo que Piassi vê como prática fundamental e diz não conhecer outra faculdade que promova esse olhar para o paciente, e não apenas para a doença, desde o começo da formação.

Alguns valores tradicionais também são passados aos alunos, fato confirmado pelo estudante, que enfoca a questão da misericórdia e volta um pouco na história da Santa Casa para fundamentar sua fala. “Antes de ser uma instituição médico-hospitalar, a Santa Casa foi uma instituição que buscava cuidar de quem necessitava de ajuda e ainda hoje penso que essa é a principal função dela (e nossa)”.

A faculdade tem um forte Departamento de Medicina Social, assim como uma colaboração que Piassi considera muito importante: o Programa de Expedições Científicas e Assistenciais (Peca), atividade extracurricular muito concorrida entre os alunos, tendo mais voluntários do que vagas. A iniciativa leva os estudantes a alguma cidade interiorana durante uma semana do período de férias para que ofereçam atendimento gratuito à população local. O aluno participou dela ao fim do primeiro e segundo ano de faculdade, vivenciando momentos muito marcantes. Ele diz ter aprendido uma lição muito importante com o Peca: “Não trabalhamos por nós, mas sim em função do próximo. O paciente, faça o que fizer, nunca nos atrapalha em nossa profissão; é nosso dever entendê-lo em toda sua complexidade e fazer o melhor para assisti-lo. Parece óbvio, mas essa ideia se perde muito facilmente no dia a dia”.

Para o graduando, a iniciativa é motivo de muito orgulho e reitera a imagem da formação humanística da instituição. Ao observar as oportunidades oferecidas, ele afirma que “não tem algo que algum aluno daqui queira que não possa alcançar”.

A Santa Casa de Misericórdia passa para os pacientes seus valores históricos por meio dos profissionais que forma. Segundo Gonçalves, “é um hospital com as portas abertas para a população mais carente e realiza um papel social enorme”. A instituição segue esse lema desde sua criação. Assim, é admirada por quem já passou por lá. Com essa filosofia, vem se sustentando por mais de 460 anos e continua a serviço da população.