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Por Enrico Weg Sera e Juliana Gigliotti Edição #60

Novos sentidos

O jornalista Ricardo Lombardi abdicou do ritmo das redações para abrir o sebo Desculpa a Poeira, em Pinheiros

A rua Sebastião Velho começa a partir da intersecção com a Mourato Coelho. Seu pavimento de paralelepípedo se estende por dois quarteirões, até acabar na rua Antônio Bicudo, em outro cruzamento. A tranquilidade em suas esquinas dá ao pedestre a esquisita sensação de não estar em São Paulo. Estranhos se dão “bom dia” como se fossem conhecidos. A rua no bairro de Pinheiros é formada por comércios discretos e modestos prédios residenciais. É na garagem de um desses que o sebo Desculpe a Poeira está abrigado.

“Muita gente acha que eu fico lendo o dia inteiro.” Ricardo Lombardi, o dono do estabelecimento, estava sentado com o computador no colo. Ao seu lado, uma mesa de madeira lotada de livros. À sua frente, a garagem de 24m² onde o sebo está instalado. Os braços expostos revelam algumas das incontáveis tatuagens que tem espalhadas pelo corpo. Apesar da crença de muitos, o que Ricardo menos faz em seu expediente é ler. Por trás dos óculos Ray-Ban, seus olhos cor de mel percorrem os livros, enquanto suas mãos os folheiam e garantem o bom estado dos produtos. Com frequência coloca preços em livros e os devolve às suas respectivas prateleiras.

O silêncio da rua é raramente cortado por carros passando ou cantos de passarinhos. Mas o sebo fala. E logo de cara já pede desculpas. Mesmo não havendo muito pelo que se desculpar. A suposta poeira não é um incômodo em nenhuma das  prateleiras que tomam o espaço da garagem. O nome Desculpe a Poeira veio do inglês excuse my dust, palavras sugeridas pela crítica e escritora Dorothy Parker para seu epitáfio. A escolha dela para a inscrição em sua lápide foi a mesma que Ricardo escolheu para escrever em seus logos. Parker morreu em 1967. Quase 50 anos depois, o sebo nascia. E há dois anos a livraria de usados vive e pulsa.

Por meio da mesa de madeira lotada de livros, que fica na calçada, o sebo convida curiosos a entrarem. As capas sussurram prévias do que os aguarda dentro do espaço aclarado por três luminárias e outros abajures. “A história do livro usado é sempre você conectar aquela obra com alguém que não sabia que ela existia, mas que precisa dela”, diz Lombardi.

Quando criança, Ricardo ficava mais à vontade lendo do que brincando com seus amigos. Tinha dificuldade de participar de grupos e eventos sociais, e encontrou na leitura uma proteção, um motivo para ficar quieto, sem interrupções. Seu pai lhe dava uma espécie de mesada para comprar livros. Conforme crescia, os interesses literários dele mudavam de gênero.

Foi nos sebos que ele encontrou um local de trocas. O fascínio por lojas de livros usados veio da percepção, em um mundo sem internet, de que nelas podia-se descobrir autores e gêneros novos. As dicas e caminhos literários de outros clientes iluminaram escolhas para um caminho próprio. E agora, no Desculpe a Poeira, Ricardo possibilita que clientes descubram os seus caminhos.

Há três estantes principais dentro da garagem. Cada uma com suas prateleiras, cada prateleira com sua categoria, indicadas por plaquinhas de metal ou etiquetas. Na esquerda, destacam-se duas prateleiras Machadianas, cercadas por outras de assuntos gerais (como como biologia e psicologia) e de livros em línguas estrangeiras. Na estante do meio são encontrados livros sobre cinema, música, moda, design e turismo. À direita, encontramos literatura brasileira e estrangeira, história geral e  outra exclusiva para livros de jornalismo.

Além de decorar o sebo com quadros e capas de jornais, Lombardi promove happy hours temáticos. Revistas e livros sobre um determinado assunto são selecionados e expostos no Bar do Bigode, na esquina do estabelecimento. Foto por Enrico Weg Sera

O interesse por ser jornalista surgiu quando, cursando Direito, começou a trabalhar no arquivo do Estadão. O emprego era apenas para ajudá-lo a pagar as despesas de casa após o divórcio dos seus pais, mas acabou influenciando a mudança de curso. Ao sair de Direito, foi para a Faculdade Cásper Líbero, onde se formou em 1994.

O início de sua carreira é marcado pela passagem no Estadão e Jornal da Tarde. Posteriormente, foi para a Contigo!, na Editora Azul, e trabalhou como correspondente em Nova Iorque pelo Último Segundo, do iG. Ao voltar, trabalhou na revista Sabor, da Editora D’Ávila e na América Online. Seguiu para a Editora Abril, onde editou a revista Bravo!, o Guia do Estudante/Almanaque Abril e a VIP. Seus maiores interesses eram as editorias de cultura e viagem. A paixão se concretizou em um projeto pessoal quando fundou, em 2007, no iG, o blog Desculpe a Poeira, com o intuito de expor pautas e fontes culturais para colegas jornalistas desenvolverem matérias. A sua última experiência foi como editor de conteúdo do Yahoo!, em 2014.

“Eu já tinha vivido 25 anos como jornalista. Chegou um ponto em que eu achei que aquilo não funcionava mais para mim. Eu tinha ido para um lado do jornalismo que já não me interessava mais, o lado da gestão, da burocracia, da administração de empresas. Para mim, era muito claro que tinha muita gente mais capacitada do que eu para fazer aquele trabalho”. Em seu trajeto foi pauteiro, redator, correspondente, blogueiro e editor. No final de 2014, o espaço que daria lugar ao sebo já estava pintado e quando o projeto semivivo tomou um formato que o agradava, dedicou-se integralmente aos livros.

Assim, a garagem de sua mãe virou uma loja de usados. Dois anos após a abertura, o espaço, antes vazio, agora é tomado por livros. Mas não só de livros lota-se o lugar. Coleções de revistas, como a Piauí, ocupam o chão, assim como vinis. No canto esquerdo, a acomodação termina com uma pequena mesa e um computador ligado a uma seleção de músicas serenas no Spotify. Prateleiras menores se refugiam nesse canto, com mais livros ocupando-as. Post-its e lembretes a lápis sobre encomendas e pendências preenchem o espaço. A parede do fundo é vermelha, e nela está encostada outra prateleira. Embaixo dessa, livros, dos mais diversos, formam pilhas no chão. Um dos vários montes acaba em Esclerose Múltipla, escrito por Sérgio Roberto. Outro, acaba em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol.

“Quem é você?”, pergunta a Lagarta para a Alice no clássico. Confrontada com a pergunta, que acanha a personagem, ela responde: “Eu… Eu neste momento não sei muito bem, minha senhora… Pelo menos, quando acordei hoje de manhã eu sabia quem eu era, mas acho que depois mudei várias vezes…”. Durante a narrativa, Alice passa por reflexões e mudanças, envolvendo o leitor em momentos de indecisões e confusões existenciais. Questionamentos e transformações tiveram grande impacto na vida de Ricardo, que substituiu tudo por uma loja de livros usados, uma carga de trabalho maior e uma vida pautada pela simplicidade. “Uma coisa que o jornalista faz muito é perguntar. E uma vantagem é que você também faz perguntas para si mesmo”.

Ricardo trabalha mais. Na maior parte do tempo, ele gerencia o lugar sozinho. Nara, sua estagiária, o ajuda de manhã com o acervo digital. Há, no total, 3200 livros cadastrados no acervo, mas Ricardo chuta que há de 6500 a 7000 livros no total. Parte deles está exposto no sebo e outra parte fica na casa de sua mãe. Em sua própria casa, no centro de São Paulo, ele tem um armário com livros que folheia ou lê antes de colocar à venda, uma espécie de entreposto, como descreveu. O excesso de carga de trabalho, porém, é compensado pela flexibilidade. “Eu só tenho domingo de folga. Essa parte é mais pesada. Por outro lado, eu também sou dono do tempo”. A loja funciona das 10 às 18 horas, menos de segunda, quando abre às 14.

A decoração também é tarefa de Ricardo. Fotos, frases e capas de jornais enquadradas enfeitam as paredes. Lombardi escolhe, para decorar a garagem, itens que fazem parte da sua trajetória ou da história do sebo. As datas das capas de jornais são dias importantes em sua vida, como o nascimento de seus filhos. Em ocasiões especiais, Ricardo ainda realiza eventos temáticos, selecionando e expondo livros que combinem com datas notáveis.

As atividades realizadas por ele podem parecer extremamente distantes do jornalismo. Mas, ao abrir o sebo, o dono descobriu que muitas coisas aproximam as duas profissões, como a busca por pautas e as histórias que chegam até ele: “Bom, acho que a coisa mais interessante para mim foi abrir uma porta para a rua. Eu sempre brinco que no jornalismo geralmente a gente vai atrás das histórias, para descobrir coisas. Quando você abre uma porta como essa, as histórias vêm até você. É um novo sentido”. Ricardo relata que pessoas sentam na cadeira do sebo e lhe contam de suas vidas. Assim, ele recebe notícias sobre o bairro, conversa com pedestres e acolhe senhoras em busca de autores obscuros.

Ao atender pessoas no sebo, é difícil diferenciar se Ricardo está conversando com um novo cliente ou com um velho amigo. É como se, sutilmente, entrevistasse seu freguês até entender do que ele precisa. As conversas tomam patamares profundos e Lombardi indica livros a dedo, aqueles que se encaixam com as necessidades e histórias daqueles que frequentam a loja. Alguns visitam o sebo em busca de inspiração para suas próprias mudanças de vidas, já que o lugar representa concretamente uma transformação.