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Por Mariana Gonzalez, Naiara Albuquerque e Paula Calçade Edição #58

À esquerda do palco

Nos treze anos  à frente d’O Teatro Má­gico, ele mostrou o rosto poucas vezes. O figurino, a maquiagem e as performances mudaram ao longo do tempo e o ajudou a criar uma persona com a qual ele garante ser, de forma ainda mais entregue e crua, Fernando Anitelli. Fazia 14ºC na capital paulista e aquele era o mês de maio mais gelado dos últimos oito anos. Vestido dos pés à cabeça em diversos tons de roxo, que oscilavam entre o lilás e o vinho, todo seu corpo estava protegido da neblina do Parque Buenos Aires, no centro da capital paulista — boina de veludo, cachecol de lã e despido de qualquer maquiagem.

Naquela quinta-feira, fazia exatamente uma semana que Dilma Rouseff havia sido afastada da presidência pelo Senado Federal e o governo interino, assumia o comando do país — cortando ministérios e eliminan­do as pastas da Cultura e dos Direitos Hu­manos. Nesse mesmo contexto, estudantes secundaristas do Estado de São Paulo ocu­pavam, pela segunda vez em seis meses, as escolas públicas em sinal de protesto pelo desvio das merendas. À Esquinas, Fernando Anitelli falou sobre o atual cenário político, a ameaça à democracia e a trajetória d’O Teatro Mágico, que garante: “Vai continuar levantando bandeiras”.

Estávamos no seu show do dia 13/05. Percebemos uma crítica política e um engajamento sobre a atual conjuntura do país. Como você vê o que está acontecendo no Brasil?
O Teatro Mágico sempre se posicionou em relação a várias ban­deiras e agendas, não a um partido. O que acontece é que, na maio­ria das vezes, essas pautas são defendidas por partidos políticos de esquerda. Hoje, discutir esses assuntos é falar sobre a democracia, é um debate que precisa ser feito. Nós falávamos disso antes tam­bém, sempre fomos contra a homofobia, o racismo, o machismo e exaltamos o empoderamento da mulher em todos os âmbitos; na música e nos nossos bastidores.

Por que você chama o aconteceu de golpe?
Sentimos que todos estão se posicionando contra a corrupção, é uma pauta que nos unifica. Mas as pessoas não estão compreen­dendo qual filtro colocam para lutar contra isso. Então, no show, quando eu gritei “golpistas não passarão”, houve uma separação no público, que estava até aquele momento junto. Um pessoal falava “não vai ter golpe!” e outros, “tchau, querida!”. Alguns fãs ainda me escreveram depois do show, contando que foram embora quando ouviram eu me posicionar. Eu respondi que se quando eles escu­tam algo em relação à liberdade e isso os incomoda, só mostra que eles precisam rever alguns conceitos sobre como viver em meio à diversidade.

É só ver o que ocorreu nos últimos dias, o presidente interino está fazendo atrocidades. Tiraram a primeira mulher presidente, depois tiram todas dos ministérios. A investigação Lava Jato parou, onde está o Sérgio Moro agora? Tudo isso mostrou a fragilidade da nossa democracia e a parcialidade das grandes mídias, que cobriram só algumas manifestações. Estamos em um momento em que precisa­mos ter paciência e coragem para ocupar o que precisa ser ocupado e colocar a cara a tapa, além de passar que o amor faz revolução. Precisamos ser até didáticos para mostrar o que está acontecendo na política.

Fernando, você acredita que a arte tem e cumpre essa função social? De ser didático sobre a política?
Com certeza! Qual é o meio de comunicação capaz de transfor­mar as pessoas para além de uma linguagem formal? A arte! Pode ser a música, pintura, livro, dança, pode ser o que for, todas essas expressões são fundamentais. Por isso, a primeira ação do Michel Temer foi acabar com o Ministério da Cultura (MinC), porque ele sabe que onde tem cultura, têm pessoas com corações e mentes abertas, e esses indivíduos não vão permitir um governo ilegítimo, com uma pauta de cortes e falta de representatividade, que jamais ganharia nas eleições.

Você falou sobre os fãs que não concordaram com o seu posicio­namento político. O Teatro Mágico se preocupa em desagradar parte do público?
Nós defendemos o que está na nossa música. Eu dialogo de forma até pedagógica com os outros lados, temos que abraçar todas essas pessoas, porque é uma revolução que se faz com a poesia e com a música. Mas quando nós cantamos: “O preconceito eleito/ A culpa imoral/ A violência descabida/ Orientação sexual/ Falta de respeito/ No púlpito, no pleito/ Homofobia, quem diria! / Amplifi­cada pela má fé! / Homem, mulher/ Somos todos bichos/ Nichos de mercado/ Datados! / Dotados de amor e querência / Por isso não esqueça: Onde sobra intolerância, falta inteligência!”, está claro como vemos nossa política, traduz totalmente o que pensamos.

Você esteve na ocupação dos secundaristas na Alesp, como foi a interação com os estudantes?
É uma geração que já chega com bagagem, eu achei lindo! Eram 60 jovens lá dentro e ninguém quebrou nada, todos sabiam muito bem o que queriam e porque estavam lutando. Pela primeira vez, aquela foi a casa do povo, naquelas cadeiras sentaram negros e ne­gras, jovens e homossexuais. Eles estavam brigando pelo direito à merenda, não é possível que os deputados estaduais não consigam juntar assinaturas para uma CPI, então eles precisaram ocupar! Mas esse foi apenas o primeiro passo, agora não vamos desocupar até o Temer sair. Precisamos compreender que estamos em uma luta e vamos continuar debatendo, para mudar o trajeto dos acon­tecimentos.

Por falar em trajeto, queremos falar um pouco sobre a história do Teatro Mágico. Como o visual e a música acompanharam as mudanças de vocês?
Desde o primeiro álbum, eu sabia que seria uma trilogia e já tinha na cabeça os nomes de cada um. O primeiro chama “Teatro Mágico – entrada para raros”, o segundo é o “Segundo Ato” e o ter­ceiro, “Sociedade do Espetáculo”. Depois, gravamos um álbum ao vivo combinando todos, precisávamos da interação com o público. Passaram dez anos de carreira, eu queria fazer um álbum menos colorido dessa vez. Pensamos então no “Grão do corpo”, um disco em preto e branco, que fala sobre discussões sociais, é denso e introspectivo. Mais tarde, queríamos trazer uma narrativa do coti­diano mais fluída, positiva e festiva de novo com outro colorido. A maquiagem acompanhou toda essa transição.

Para fazer novas músicas, vocês buscam influências e pesquisam outros artistas novos e antigos? É mais que uma inspiração?
Exato, todo trabalho são horas de pesquisas. Se fizermos dez músicas em uma semana, apenas uma sai, porque sempre muda­mos o tom e a letra. Escrever é como costurar com uma agulha pequena um vestido muito bordado ou lapidar uma escultura, leva muito tempo. Nas parcerias, escrevo mais rápido, porque tenho distanciamento já que é uma música para outra pessoa, mas quan­do são meus trabalhos, eu demoro. O medo é sempre a próxima estrofe, como disse o poeta Mário Quintana.

O Teatro Mágico sempre se apresenta com maquiagem de circo. Existe uma diferença entre o Fernando que entra no palco vestin­do esse personagem e o de agora?
A curiosidade é que quando estou todo pintando é o momento em que sou mais eu, uma hora de total entrega nos shows, é autên­tico. Ao mesmo tempo que é um personagem, estou ali para sentir na pele tudo o que vir. Incorporo aquilo que posso remeter ao pú­blico, acabo me distanciando de mim mesmo para representar uma ferramenta que leva sentimentos, é como um ator.

Foto por Luiz Rodrigues

Como vocês lidam com toda a combinação entre dança, música e toda a pluralidade que está no palco em um show ao mesmo tempo?
O primeiro de tudo é a música, o que queremos falar. Depois de ter a combinação entre ritmo e letra, nós mostramos para a equipe. Todos os músicos trabalham juntos nos arranjos e nas adaptações. Aí levamos para as dançarinas todas as canções e perguntamos em que seria mais interessante uma performance e elas começam a en­saiar. No dia do show, nos juntamos e unificamos tudo, ensaiamos antes da apresentação esse encaixe. Às vezes, erramos e acabamos fazendo um improviso, que é bem-vindo quando se transforma numa cena positiva.

Fernando, o Teatro Mágico não tem vínculo com uma gravadora, até como uma forma de crítica. Como o grupo se sustenta no meio artístico?
O Teatro Mágico também se caracteriza por isso. Nunca fomos um projeto de vanguarda, porque nunca foi novidade se pintar para cantar, usar figurino na apresentação também não é algo novo, o Tropicalismo já tinha feito isso. Na Grécia Antiga, o teatro usava máscara! Mas no Brasil dos anos 2000, não existia um grupo pop que falava sobre liberdade e pluralidade na música e a gente se transformou em uma bandeira. Eu tinha um trio antes da banda, que tinha vínculo com uma gravadora que acabou engavetando nosso trabalho porque não queríamos adequar às canções a um estilo que não concordávamos. Ficamos três anos sem gravar e acabou tudo, desfizemos o contrato. Mas depois de um tempo, meu pai colocou todas as minhas músicas na internet, ai tudo recomeçou. A atitude de um “pai coruja” fez com as pessoas ouvis­sem o nosso trabalho, porque não é um empresário que vai definir se suas canções devem ser tocadas e, sim, o público que faz fila na porta de um show. Meu irmão mais novo, que é sociólogo, depois teve a ideia de colocar tudo para baixar no nosso site, essa é a arte livre. Nosso capital vem dos shows ao vivo e dos desdobramentos das músicas, que são os CDs, as camisetas e os acessórios. A músi­ca não é só o produto, é toda a experiência que está envolvida nela.

Como você vê o pessoal da nova MPB e seu posicionamento nesse contexto político e social? Eles estão cumprindo o papel de se engajar, como você disse no começo da entrevista?
O artista precisa se colocar, senão acaba fazendo a arte pela arte, tem que trazer uma provocação do pensamento e da pes­quisa. O Leoni sempre coloca essas questões nos shows, o Frejat também. O Criolo e o Emicida se destacam nas composições, junto com o Chico César e a Tulipa Ruiz, principalmente durante e de­pois das ocupações dos estudantes. A Maria Gadu esteve presente. Essa geração nova traz as questões que nos move e cria uma faísca criativa, que empodera para a luta.