Sumário Fechar
Por Guilherme Alferes e Gustavo Ramos Edição #64

Fantasmas de concreto

Prédios históricos abandonados assombram o coração da capital paulista

No cruzamento das ruas Venceslau Brás e Roberto Simonsen, ao lado da Praça da Sé, a sede da Associação Auxiliadora Classes Laboriosas resiste ao tempo e ao esquecimento. Inaugurado em 1907, o edifício do número 22, também conhecido como Salão Celso Garcia, soterra em seus escombros as memórias de tempos áureos de luxo e luta.

Com consultórios médicos e dentários, o prédio possuía diversos serviços de auxílio para mais de 20 mil trabalhadores da construção civil e carpintaria de São Paulo. Havia ali um auditório, palco de peças de teatro, encontros e assembleias para a discussão das atividades sindicais e dos direitos trabalhistas. Foi base de greves e revoltas operárias contra a Era Vargas que tomaram a cidade na década de 1940. Em 1953, foi o principal centro de debates relacionados à grande greve de trabalhadores, com participação de quase 300 mil sindicalistas. Milton Costa, morador há 16 anos do prédio ao lado e amigo de um antigo funcionário do edifício, lembra-se com entusiasmo da aparência interna da sede. “Eu costumava entrar lá, era um luxo da porra”.

O tombamento histórico realizado pela Prefeitura de São Paulo em 1995, por ser um importante espaço de convívio artístico e político do início do século 20, não foi o suficiente para proteger o edifício do fogo. Em 2008, um incêndio consumiu a sede das Classes Laboriosas, deixando de pé apenas algumas paredes e a fachada em estilo art déco. “A fumaça subia e entrava nos apartamentos deste lado do prédio [ao lado do Salão]. Minha esposa viu a fumaça, descemos correndo”, recorda Costa. Dois anos depois, foi formalizado um projeto de recuperação do edifício, que nunca saiu do papel.

Hoje, o esqueleto do salão é um dos 779 prédios notificados pela Prefeitura como ociosos. De acordo com o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo de 2014, foram definidas três classificações para as construções que se encontram sem utilização, passíveis de notificação. A primeira, “imóveis não edificados”, compreende terrenos com mais de 500 metros quadrados que não cumprem função social alguma. Em seguida, há os “imóveis subutilizados”, terrenos maiores que 500 metros quadrados com área construída menor que a permitida. Por fim, os “imóveis não utilizados” são os que estão há mais de um ano sem uso.

Para a arquiteta Nadia Somekh, professora emérita da Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie e ex-diretora do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura, os edifícios vazios no Centro não estão abandonados. “Eles têm seus donos, que os deixam lá esperando uma valorização”, afirma. Fora do mercado, colaboram para a chamada especulação imobiliária, que tem forte influência no déficit habitacional. “Isso faz crescer os preços fundiários e imobiliários da cidade, ou seja, reduz a oferta de habitação, aumentando os preços tanto para moradia, quanto para escritórios. Assim, reduz a oferta e aumenta o preço”.

Desapropriações

De acordo com uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) em parceria com o Sindicato da Indústria da Construção do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), o déficit habitacional no Brasil estaria em 7,7 milhões de domicílios em 2017, isto é, famílias que vivem em habitações precárias, com mais de três pessoas por dormitório ou que gastam mais de 30% de sua renda com o imóvel alugado em áreas urbanas. Em São Paulo, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), o déficit abrange 358 mil moradias ao mesmo tempo que as pessoas de baixa renda são afastadas do Centro em decorrência dos altos valores para residir na região.

“Uma vez identificado que o prédio está ocioso, a gente notifica o proprietário e ele tem um ano para dar uso a esse imóvel. Caso ele não consiga, será cobrado imposto progressivo até um valor máximo de 15% no período de cinco anos”, informa Heliana Lombardi, coordenadora geral do Departamento de Função Social da Propriedade, pertencente à Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo. A partir do quinto ano sem uso, o imóvel pode ser desapropriado e o proprietário recebe títulos de dívida pública como indenização segundo o Plano Diretor.

Como o decreto que formaliza o plano completa cinco anos somente em 2019, até o momento que esta reportagem foi escrita, não houve nenhuma desapropriação, mas 1.385 imóveis já foram notificados. Entretanto, somente 99 desses prédios passaram a cumprir as novas obrigações. Como consequência, pela falta de moradia, muitas pessoas recorrem a ocupações nesses edifícios.

Ociosidade e especulação

Atravessando a Rua Roberto Simonsen, em frente à antiga Classes Laboriosas, o também histórico Palacete do Carmo observa as pessoas andando pela calçada através de suas janelas quebradas e vazias. Erguido na década de 1920, o edifício pertence à Cúria Metropolitana de São Paulo, instituição administrativa da Igreja Católica. Já foi ocupado por conta da preferência das pessoas em se manterem no Centro, pelas oportunidades de trabalho e pela concentração de serviços na região como creches, hospitais e comércio.

Em novembro de 2014, cerca de 300 pessoas tiveram que deixar a ocupação do Palacete após uma interferência da Polícia Militar. Procurada pelos repórteres, a Cúria não se pronunciou sobre a ocupação ou sobre o edifício abandonado. “A história é meio obscura, a Igreja não conta nada”, diz Alexandre Lima, comerciante de uma loja de frutas no térreo do imóvel.

O Palacete não é o único que já foi ocupado. De acordo com a Sehab, até maio de 2018, havia 45.872 famílias ocupando um total de 206 prédios pela cidade inteira. Só no Centro, eram 53 ocupações abrigando 3.300 famílias no total.

Na opinião de Heliana Lombardi, não é porque os prédios estão ocupados que necessariamente passam a ter função social. “Não é solução, não tem segurança, não tem salubridade, não dá para classificar dessa maneira”, analisa. “É responsabilidade do proprietário deixar o prédio em condições e fazer com que ele tenha uso novamente, seja no mercado, seja para atendimento da população mais carente”.

Além da espera pela valorização do imóvel, muitos donos encontram empecilhos burocráticos que dificultam sua posse integral. “São propriedades muito antigas, que passaram por várias gerações de herdeiros, e diversas delas têm problemas de registros de localização deles”, afirma Rita Gonçalves, coordenadora dos Projetos de Intervenção Urbana (PIU) que lidera os estudos que subsidiam a Operação Urbana Centro. Essa é uma ação da Prefeitura, criada na tentativa de solucionar o problema de ociosidade nos prédios do Centro e que visa estimular por subsídios a requalificação urbana dessa região.

“A operação, que está vigorando baseada na Lei 12.349 de 1997 deu muitos incentivos para o potencial construtivo de imóveis tombados”, diz Golçalves. Chamadas por Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (Peuc), as notificações sobre o IPTU progressivo para os edifícios sem uso são ainda a única forma da Prefeitura combater esse problema. “O que nós imaginamos é que a pressão da Peuc, combinada ao incentivo que será oferecido num futuro instrumento de disciplina da área central, favoreça a movimentação desses imóveis”, comenta.

Para a professora Nadia Somekh, faltam programas que deem função aos edifícios ociosos no Centro. “Um projeto urbano é aquilo que está faltando para olhar aquela área como um pedaço do Centro da cidade que tem patrimônio histórico, que precisa ser preservado, mas precisa atender às necessidades contemporâneas da cidade”, afirma. Não adianta somente restaurar os prédios que estão caindo aos pedaços pelo abandono sem dar um propósito a eles.