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Por Pedro Zanatta Edição #66

Fora da ordem global

Grandes potências econômicas travam batalhas comerciais sem previsão de desfecho para manterem sua hegemonia

Durante o pronunciamento de posse do novo Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, em janeiro de 2019, foi anunciada a luta contra o globalismo: “O Itamaraty existe para o Brasil, não para a ordem global”. Esse pensamento vem ganhando força também em falas de autoridades fora do País. Com um discurso focado na preservação da soberania nacional e no fechamento de fronteiras, Donald Trump, na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2019, afirmou: “O futuro não pertence aos globalistas, e sim aos patriotas”.

Ao longo do século 20, a globalização intensificou a integração econômica, social, cultural e política entre os países ao redor do mundo. A partir disso, organizações internacionais e blocos econômicos foram criados como: as Nações Unidas em 1945, e, em 1952, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que posteriormente se tornaria a União Europeia (UE). No entanto, essa prática liberal de comércio e cooperação internacional tem sido foco de ataque de líderes populistas que qualificam políticas protecionistas contra a livre circulação de pessoas, bens e serviços.

Para a professora Regina Laisner, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas, a retórica do combate à globalização independe do espectro político. “A ideia de luta contra o globalismo persiste há anos e foi usada como base para a implementação de regimes autoritários, como foi o caso do nazismo, em que os judeus e outras minorias eram vistas como uma ameaça externa à Alemanha. A teoria se adapta de acordo com a narrativa de seu agente emissor”, afirma. Ela também ressalta que essa ideia sempre é acompanhada de uma teoria filosófica para enganar e entregar respostas simples às questões complexas.

O entrave econômico entre Estados Unidos e China se tornou um dos principais marcos do antiglobalismo e está levando vários países nesse furacão. O conflito, que se estende até hoje, teve início em 22 de março de 2018, quando Donald Trump anunciou uma lista de tarifas sobre importações vindas da China que totalizaram 50 bilhões de dólares.

O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Igor Fuser, explica que o crescimento da economia chinesa, iniciado em 1978 com as reformas implementadas pelo então líder do Partido Comunista, Deng Xiaoping, representa uma ameaça à hegemonia norte-americana no mundo. “Por isso, o governo Trump impõe obstáculos à expansão da China em áreas estratégicas, como a tecnologia da informação e as telecomunicações”, explica. Mesmo com um crescimento menor do PIB chinês no terceiro trimestre de 2019, de 6,0%, segundo o Escritório Nacional de Estatísticas (NBS, na sigla em inglês), o país permanece entre os que têm maior taxa de crescimento no mundo.

Os impactos causados pelo conflito apareceram com a divulgação das projeções do relatório Perspectiva Econômica Mundial, lançado em outubro do ano passado, pelo Fundo Monetário Internacional. O crescimento da economia global previsto para o ano de 2020 caiu para 3,4% – em abril do mesmo ano, a projeção do Fundo era uma expansão de 3,9%. Ainda de acordo com o relatório, foi previsto um crescimento estável no PIB das economias desenvolvidas: 1,7% para 2019, enquanto os países emergentes sofreram queda de 4,7% para 4,6%.

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, e Xi Jinping, líder da China, travam uma disputa comercial sem pretensão de acabar

Além da questão das tarifas, existem também conflitos cambiais. O Banco Central Chinês, por exemplo, utiliza a desvalorização do próprio yuan para retaliar os EUA. A estratégia funciona da seguinte forma: quando o banco chinês opta por vender mais dólares, ele está aumentando a oferta da moeda estrangeira, o que valoriza o yuan perante o dólar. Entretanto, quando ele prioriza a compra de dólares, a moeda norte-americana torna-se mais escassa e, consequentemente, mais cara.  A tática prejudica países exportadores de manufaturados, como o Japão. O preço mais baixo de produtos da China acirra a competição nos mercados internacionais, países podem ter suas exportações afetadas negativamente.

A queda de braços que hoje sacode a economia e a estabilidade política do planeta ganha contornos mais dramáticos quando se pensa que o antiglobalismo, contraditoriamente, chegou ao berço do liberalismo econômico. Em um processo que se arrasta desde junho de 2016, o Reino Unido não conseguiu sair da União Europeia, conforme a vontade da maioria nas urnas, até o final do fechamento desta edição de ESQUINAS. Em um verdadeiro processo de divórcio litigioso dos europeus do continente, os britânicos que fizeram a Revolução Industrial buscam hoje uma maneira de fazer omeletes sem quebrar ovos. Algo impossível quando o assunto é economia.

“Não me arrependo de nada”. Foi com essa declaração que, após o plebiscito sobre o Brexit, o então premiê britânico, David Cameron, autorizou a realização de um referendo para que o Reino Unido deixasse a União Europeia. Após a medida, decidiu renunciar e deixar o cargo para um sucessor pró-Brexit.

A tentativa de divórcio já dura três anos e tem perturbado a vida do Parlamento e da população, aumentando a instabilidade no Reino Unido. Desde então, os acordos apresentados pelos chefes de governo foram rejeitados pelo parlamento. O que permanece é a dúvida quanto ao impacto econômico para o país e para a economia global, que já sofre com a guerra comercial. De acordo com a avaliação do Banco da Inglaterra, em caso de uma ruptura sem acordo e sem transição, o PIB britânico sofreria uma queda de 5,5%. As incertezas que giram em torno do Brexit também influenciam, portanto, as economias vizinhas. Cálculos do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica apontam que o crescimento da economia alemã caiu em média 0,2 ponto percentual por ano, desde junho de 2016, em relação ao estimado sem a decisão do referendo.

Para Fuser, “o Reino Unido ficou totalmente isolado com sua decisão. As previsões de que o Brexit desencadearia a saída de vários outros países da União Europeia fracassaram totalmente e, hoje, a maioria dos britânicos, de acordo com as pesquisas, prefere a permanência do país na UE, anulando o plebiscito”.O professor explica que existe um sintoma de enfraquecimento do projeto neoliberal de criação de um mercado global livre das barreiras nacionais e gerido pelos interesses do mercado financeiro internacional e das grandes empresas transnacionais dos EUA, Europa Ocidental e Japão. Fuser também ressalta a ascensão de políticos demagógicos que associam a insatisfação popular a políticas neoliberais e, por isso, opõem-se a aspectos específicos da globalização, como o caso de Trump ao cancelar o apoio ao Tratado Trans-Pacífico em 2017”.

A professora Laisner ressalta uma característica que tem feito parte dos discursos políticos propagadores de atitudes antiglobalistas. “Muitas vezes, líderes confundem o nacionalismo excessivo com a legítima soberania nacional. Assim, apoiando-se nessa prerrogativa nebulosa, conseguem potencializar certos medos na população, principalmente em momentos de crise, e passam a validar a tese de que tratados internacionais, por exemplo, seriam prejudiciais ao país”, explica.

Ainda são incertos os rumos que os países tomarão para driblar os impactos causados por políticas protecionistas. Notícias de possíveis acordos entre China e Estados Unidos são frequentes, mas a impressão é de que a solução permanecerá nebulosa, assim como no caso do Brexit.