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Por Amanda Prado e Vanessa Nagayoshi Edição #64

Antídoto de esperança

Instituições que atuam na prevenção do suicídio unem esforços para combater o tabu ao redor do assunto

Certo dia, Carmela Iandoli atendeu a uma ligação. Era uma senhora dizendo o quanto se sentia triste pelo falecimento do porteiro de seu prédio, pois era o único que a cumprimentava todas as manhãs com “Bom dia”, “Que lindo corte de cabelo”, “Sempre bom te ver firme e forte”, “Seu sorriso é contagiante”, “Essa blusa lhe caiu muito bem”. Mas ela não conseguia expressar a tristeza às pessoas a sua volta, já que, provavelmente, a responderiam com descaso. Aos seus 68 anos, sentia-se um “saco velho sem valor algum”. “Gostaria que as pessoas tivessem o 188 como uma alternativa em momentos de angústia, que fazem parte do nosso crescimento, do nosso aprendizado como ser no mundo”, afirma Iandoli, voluntária há 14 anos do Centro de Valorização da Vida (CVV), instituição sem fins lucrativos que presta serviço de apoio emocional e, sobretudo, de prevenção ao suicídio. Para integrar a equipe de voluntariado, não há restrições, basta ter boa vontade. “O que ela [a pessoa] tem que ter é vontade de se doar e se identificar com o trabalho”, explica a voluntária, que trabalha no CVV de São Caetano do Sul. O serviço é gratuito e feito por meio de ligação pelo número ao qual a senhora se refere, e-mail, chat ou presencialmente nos postos de atendimento espalhados pelo Brasil. Em 2017, em parceria com o Ministério da Saúde, o atendimento passou a ser nacional.

De acordo com o Ministério da Saúde, quase 11 mil pessoas tiram suas próprias vidas todos os anos no Brasil. Ainda segundo o departamento, o suicídio é considerado a quarta maior causa de morte do País entre jovens de 15 a 29 anos. O tabu em relação ao tema é uma barreira que impede as pessoas de buscarem ajuda ou simplesmente falarem sobre suas angústias. “Um antídoto ao suicídio é o desabafo”, ressalta Sergio Batista, voluntário de 65 anos do CVV. Ele confessa, sem preconceitos, já ter utilizado o serviço quando precisou conversar com alguém. O mesmo conta Iandoli. Embora fique grande parte do dia atendendo às ligações, por vezes, é ela quem disca. “Sinto-me bem, reorganizo meus pensamentos e minhas emoções. O serviço é de livre acesso, é para todos, então não teria o porquê de eu não usar”, explica.

Marília*, de 19 anos, passou a utilizar o CVV como alternativa no momento em que não estava fazendo tratamento psicoterápico. “Não havia ninguém perto de mim com quem eu pudesse conversar a respeito do suicídio”, conta. Ela usa o canal há mais de um ano e é uma das que atestam a qualidade do serviço. Descobriu a existência desse tipo de apoio navegando no Facebook, e seu primeiro contato com uma voluntária do CVV se deu por e-mail após uma intenção suicida. “Sempre que eu sinto necessidade de lidar com alguma emoção mais forte, que eu saiba que pode desencadear algo mais difícil, posso ir lá e conversar sobre isso com essa voluntária, desabafar com ela, tendo a consciência de que não vai me julgar, me abandonar, de que eu não vou ser exposta”, confessa a jovem. Para Marília, nos momentos mais complicados, o CVV é um refúgio em que sempre há alguém disposto a ouvi-la e com quem ela sente confiança  ao se abrir. “Então eu posso ter essa regularidade que me dá a segurança de eu ter uma pessoa com quem posso falar dos problemas que eu talvez não consiga desabafar com outras pessoas”, conta.

Falando abertamente

Ao longo da história, pessoas que sofriam de transtornos mentais foram deixadas à mercê da sociedade, acusadas de bruxaria ou de estarem possuídas pelo demônio. Em 1583, a austríaca Elisabeth Plainacher foi chamada de bruxa e acusada de ter enfeitiçado sua neta, Anna, que sofria de epilepsia. A doença era vista como uma forma de possessão demoníaca. Plainacher morreu na fogueira após confessar, sob tortura, ser uma bruxa. Hoje, essas ideias não possuem mais força, mas outros estigmas foram construídos: quem tem depressão é preguiçoso, ansiedade é agitado, bipolaridade é louco. A psicóloga Karen Scavacini, de 41 anos, explica que a psicofobia preconceito por quem sofre de transtornos psicológicos impede que as pessoas recebam o cuidado necessário. “Quando uma pessoa chega no hospital, ela é maltratada. Não é tão fácil achar locais que tenham atendimento sensibilizado o suficiente para não julgar”, afirma. Scavacini é cofundadora do Instituto Vita Alere, que atua na prevenção do suicídio e posvenção termo que surgiu em 1970, na América do Norte,  para explicar a prevenção das futuras gerações, sobreviventes e familiares daqueles que tiraram a própria vida. O Instituto Alere promove rodas de conversa, treinamentos para profissionais da área, palestras e atendimentos psicoterapêuticos.

A campanha as fez repensar que a morte não é o caminho, que há outra saída

Karen Scavacini, psicóloga

Instituições como o Vita Alere se concentram em estratégias para combater o preconceito. Uma das campanhas que visa quebrar o silêncio acerca do assunto é a hashtag #EuEstou. Em parceria com o CVV e a consultoria de Scavacini, o Facebook lançou uma ferramenta que agrupa vídeos de conscientização sobre o suicídio. Ele também oferece contatos emergenciais tanto para quem sofre de problemas psicológicos quanto para os familiares. “Recebi mensagens de pessoas agradecendo, dizendo que estavam pensando em tirar a própria vida, mas que a campanha as fez repensar que a morte não é o caminho, que há outra saída”, relata a psicóloga.

Outra campanha promovida pelo CVV é o Setembro Amarelo, iniciada em 2015. Caminhadas, palestras, balões, pontos turísticos e edifícios costumam ser iluminados pela cor amarela, já que setembro é considerado o mês mundial de prevenção ao suicídio. Folhetos são distribuídos em locais públicos como maneira de informar sobre fatores de risco e formas de proteção. “A gente traz uma visão de saúde pública para não ter somente a visão de consultório, de que eu só posso prevenir o suicídio se a pessoa vier até mim”, conta a Scavacini sobre o treinamento que aplica em psicólogos profissionais.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados se houvesse amparo. Estar em um ambiente de compreensão é fator decisivo para que alguém se sinta confortável e tenha força para lidar com problemas. As ligações para o 188 do CVV são anônimas e não há registros de gênero nem idade. “Conversamos de forma compreensiva e respeitosa. Nós não temos como direcionar um diagnóstico ou uma solução. Ela é um ser humano em crise e eu estou disposta a acolher”, explica Carmela Iandoli. A meta, segundo o Ministério da Saúde, é reduzir em 10% a taxa de suicídio até 2020.

“A vida corrida e o estresse em busca de resultados têm sido o motor de muitas doenças emocionais”, comenta Iandoli. No país, 79% dos suicídios são cometidos por homens, um número quatro vezes maior se comparado às mulheres. Segundo Scavacini, isso acontece por conta do sistema patriarcal que impõe a eles funções como a de provedor da família, gerando um sentimento de impotência quando não se obtém sucesso na vida. “Ele tem maior dificuldade de pedir ajuda por uma pressão cultural de que ele tem que ser muito bom e não pode falhar”.

Buscar ajuda em momentos de extrema angústia, raiva, sobrecarga ou quando a situação parece não ter saída é a atitude primordial a ser tomada. “Ela [a doença], sendo diagnosticada, pode ser tratada. Assim, prevenimos um acúmulo de desordens que podem afetar o nosso equilíbrio”, comenta Iandoli. Para Scavacini, houve algumas conquistas de uns anos para cá. Embora ainda haja um longo caminho pela frente, ela acredita que, se comparado a cinco anos atrás, agora há uma abordagem maior sobre o suicídio nos meios de comunicação. “Hoje em dia, a mídia já entende que pode falar abertamente, mas com responsabilidade. Falar também salva vidas. Então acho que essa visão está mudando”, conclui a psicóloga. Diante da situação vivenciada com a senhora de 68 anos, Iandoli enfatiza a importância de se falar sobre a solidão, o abandono e, acima de tudo, o preconceito. A voluntária afirma ter sido capaz de dimensionar a ajuda que seu trabalho oferecia às pessoas naquele momento e, com suas próprias palavras, “o quanto de significado um olhar valoroso sobre nós contribui para continuarmos em frente”. Comenta, ainda, que ajudar nunca é uma tarefa fácil, porque, é necessário se despir completamente de qualquer “pré-conceito” para que seja verdadeiro e eficaz.

*O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada