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Por Carolina Cotes, Quezia Isaías e Vanessa Nagayoshi Edição #60

Nua e crua

Três atrizes pornôs contam dos traumas vivenciados na indústria do sexo e como cuidam da saúde

Patrícia Kimberly se prepara para mais um dia de trabalho, mas não é uma preparação qualquer. Atriz pornô de 32 anos tem no corpo um instrumento de trabalho fundamental. Para encarar a maratona de gravações, que incluem até mesmo cenas de dupla penetração, ela segue um ritual que vai desde relaxantes musculares a pomadas e utilização de plugs anais, que ajudam a relaxar a musculatura da região. A atriz conta que, em uma das vezes, chegou a tomar três comprimidos e entrou em cena praticamente dopada. “Faço isso para relaxar. Mas, em uma das vezes, o cara me jogava de um lado para o outro, e eu nem sentia mais”, conta.  Relatos como o de Patrícia são comuns entre as atrizes pornôs. Britney Bitch, nome artístico escolhido por Priscila, de apenas 22 anos, há dois no ramo, resume bem uma rotina que inclui práticas agressivas. “O produtor falou para os atores me pegarem com força e teve uma hora em que quase desmaiei. Fiquei chateada, chorei, fiquei tonta. E, mesmo assim, a gravação durou o dia inteiro, porque disseram que eu não estava fazendo direito”. A rotina de trabalho dessas profissionais do sexo deixa marcas físicas e psicológicas.

A falta de informação gera um ciclo vicioso entre o preconceito, a agressão sexual e a lucratividade da indústria pornográfica, sendo este último, o canal que permite o processo abusivo e a consequente deterioração da saúde da mulher. A pornografia, ao obedecer as regras de oferta e demanda, subentende um tipo de consentimento do consumidor para com as etapas de produção do conteúdo. A conscientização é um processo lento que precisa ser coletivo. “As mulheres são mais vulneráveis porque têm uma educação mais castradora, elas são mais julgadas. Toda questão sexual ainda é revestida por muito tabu, muito machismo”, afirma a ginecologista e especialista em sexualidade feminina Carolina Ambrogini, completando seu argumento dizendo que o homem é mais livre sexualmente.

Além da violência psicológica, a mulher está em constante exposição às doenças sexualmente transmissíveis. Herpes, clamídia, gonorreia, AIDS, sífilis e tricomoníase são algumas das DST’s que ganharam visibilidade no Brasil nos anos 90. Apesar da grande proporção de informação veiculada pela mídia, ela não foi capaz de erradicar as dúvidas em relação às doenças as quais as atrizes pornôs estão sujeitas todos os dias. Patrícia Kimberly revela o método de prevenção mais comum. “A grande maioria dos produtores fazem com camisinha aqui no Brasil. Só duas produtoras que fazem sem [camisinha] atualmente.” André Santos, sexólogo da Sociedade Brasileira de Estudos de Sexualidade Humana (SBRASH) confirma que a maior parte de atrizes na indústria pornográfica entra no ramo por falta de escolha e informação, por preferir um caminho mais fácil para o ganho financeiro a curto prazo, porém, sem estruturas para lidar com o que está por vir. Britney Bitch entrou no ramo sem muitas expectativas, ao se deparar com um anúncio no jornal de uma produtora que precisava de garotas para filmes adultos. Na época, ela procurava um emprego, então resolveu tentar, foi aceita e a partir daí não parou mais. “Eu assistia filmes pornôs e eu achava bonito, como se fosse atriz de novela”.

Nesse cenário, muitas atrizes acabam se submetendo a práticas fetichistas – desejo sexual em certas atividades, objetos ou partes do corpo. Dentre os aspectos no meio chamado de mainstream ou popular da pornografia, estão categorias como “abuso facial” (nome dado à prática de sexo oral que leva à náusea e até ao vômito), o fisting anal (prática sexual que consiste em inserir a mão e até o antebraço no próprio ânus ou no do parceiro), alguns atos sadomasoquistas como a asfixia erótica: “Amiga realizando fetiche violento de sexo brutal real com essa loirinha sadomasoquista que adora sofrer”, entre outros. Tais práticas acabam ferindo a integridade física e psicológica das mulheres que, sem ter consciência da violência, se doam aos fetiches abusivos. “Tem coisas que eu não consigo fazer, então não faço. Teve uma menina que falou sobre o limite da criatividade no pornô, e ela contou que em uma cena, em que estava embriagada e pingaram vela no seu corpo, mas a vela era colorida então deixava marcas, ela não sabia disso, não sentiu a dor e no fim o corpo dela ficou cheio de bolhas”, relata a atriz Patrícia Kimberly.

Jéssica*, de 30 anos, é ex atriz pornô e atualmente está casada e é mãe de dois filhos. Traumatizada, ela revela que os homens perdem o controle quando se trata de criar maneiras de fazer sexo. “As pessoas chamam de fantasia inventar uma maneira de sair do comum, e algumas não se dão conta que perderam o controle e já não tem uma vida sexual saudável, já se tornou doentia”. Ainda assim, muitas atrizes não veem esses episódios como violência, consideram isso como um risco ocupacional, ou seja, uma consequência do ramo. Após uma série de agressões que sofreu durante a gravação em que chegou a desmaiar, Britney atribui o ocorrido ao fato de na época ser inexperiente e revela em tom de alívio “mas a cena terminou, graças a Deus. Isso foi bem no comecinho da carreira mesmo, agora eu já consigo fazer tudo ‘mais de boa’”. Patrícia comenta que já vivenciou experiências do tipo: “Já aconteceu uma cena que eu tive que parar porque tava tudo doendo, o produtor parou, eu comecei a chorar e ele disse: ‘Quando você terminar de chorar, arrumar sua maquiagem, a gente termina a cena’. Caso o contrário eu sairia com a metade do cachê ou sem”.

O Brasil, segundo os estudos do site TopTenReviews, é vice na produção de conteúdo adulto mundial, perdendo apenas para os Estados Unidos, onde se concentra a maior quantidade de produtoras de pornografia no mundo. A lei de 2013, válida no mercado norte-americano, obrigava o uso de camisinhas durante as gravações. A transformação foi impactante para o meio, porém, cedendo às pressões da indústria bilionária, a lei foi desregulamentada em fevereiro de 2016. No Brasil, não existem termos legais específicos sobre a indústria pornográfica de modo geral. O mais próximo de uma tentativa pela regulamentação dos profissionais do sexo foi o Projeto de Lei 4211/12, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que previa a prestação de serviços sexuais de livre vontade mediante remuneração a partir dos 18 anos de idade, vedando qualquer tipo de exploração sexual. A ausência de legislação também é responsável pela prática abusiva de produtoras de “fundo de quintal”, nas quais o amadorismo coloca em risco a saúde da mulher.

Esse quadro é ressaltado por Paula Aguiar, presidente da Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual (ABEME) e do Conselho Empresarial de Prevenção do HIV: “No Brasil não existe nenhuma representação política no pornô. Com a ascensão da pirataria, o meio acabou ganhando um ar muito mais amador, dificultando a representação, ou mesmo a não facilitar os atores uma forma mais profissional”. Acrescenta que para tal regulamentação se tornar possível, o interesse deve partir dos atores e atrizes, os quais ainda não expõe seu posicionamento sobre a construção de uma legislação. “Eu acho que tá tudo certo”, se posiciona Britney Bitch ao ser questionada sobre o modo como a indústria pornográfica lida com a saúde.

PREVENÇÃO E PROFILAXIA

Apesar da ausência de normas, existem políticas públicas que podem ser úteis para a conscientização desses profissionais. Em 2002, a Coordenação Nacional de DST’s e Aids, do Ministério da Saúde, lançou uma campanha nacional voltada para as profissionais do sexo feminino chamada “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”, que buscava promover os cuidados à saúde e conscientização das mulheres sobre os seus direitos. Além disso, atualmente, as próprias produtoras estão arcando com os custos dos exames. “Costumo ir no Lavoisier ou no Delboni. É a produtora que paga tudo e pegam os resultados”, conta Patrícia. Em contrapartida, existem exceções, pois a pornografia, por ser uma indústria, seguindo a lógica do capital, procura brechas para o barateamento de suas produções. Sendo assim, Britney revela que quando começou a gravar com a produtora Brasileirinhas, não utilizava o preservativo e, hoje, para economizar dinheiro, as gravações são feitas com camisinha. Porém, o exame não é necessário.

Cristiano Gamba, infectologista da rede pública do Centro de Referência de Treinamento em DST e AIDS, diz que os exames devem ser exigidos regularmente para evitar a invalidez do resultado. “Houve um caso de uma atriz que veio aqui, fez um exame que deu negativo (para o HIV) e depois outro exame que deu positivo, ela continuou usando esse exame negativo para não perder os trabalhos”. A popularização de métodos preventivos transformou radicalmente o número de casos que, no passado, eram volumosos pelo desconhecimento das precauções. Já hoje, a procura de apoio médico é baseado na pós exposição sexual, ou seja, posterior a relação desprotegida.

“Mas eles sabem que a gente existe? Precisaria de uma campanha de orientação do nosso serviço mostrando que nós existimos. Com esse novo método da profilaxia pós exposição, que chamamos de Profilaxia Pós Exposição (PEP), ficamos com uma evidência maior, e muitos vêm nos procurar por causa disso”. Já disponível em 18 unidades médicas especializadas em DST’s na grande São Paulo, o novo medicamento, conhecido como “pílula do dia seguinte contra AIDS”, diminui até 96% o risco da contaminação pelo HIV após uma situação de exposição… O intervalo ideal que pode garantir a eficácia do medicamento exige o início do tratamento de duas até 72 horas após a exposição.

Este tipo de iniciativa possibilita o maior cuidado para com a saúde sexual de quem é exposto diariamente com diferentes parceiros, o questionamento está ainda na diluição da iniciativa de cuidado contínuo com o corpo. “Eu percebo que são pessoas muito abandonadas em termos de saúde pública, elas agem muito do que uma diz pra outra, e nós podemos oferecer um atendimento com uma orientação gratuita aqui. Vão descobrir a gente quando tiverem alguma emergência para uma profilaxia”, posiciona-se o infectologista.

A sexóloga observa que existe um impacto que implica na dificuldade de atrizes se envolverem em uma relação amorosa por causa do preconceito e ciúmes do parceiro que enxerga a atriz numa situação de marginalidade, além de existir um confronto entre o trabalho sexual durante as gravações e o cansaço de levar a relação sexual para a vida pessoal. “Meus namorados não duram muito tempo. No começo eles aceitam [a profissão], só que vai passando o tempo e quando eles falam para eu largar, eu largo deles. Já aconteceu uma vez e quis parar de gravar,  arrumei até um emprego numa academia, só que o salário era 750 por mês, por isso desisti”, conta Britney.