Primeiro julgamento histórico de militares e ex-presidente Bolsonaro por tentativa de golpe expõe desafios da democracia brasileira
Em 1985, a Justiça argentina julgou os comandantes das três juntas militares pelas violações dos direitos humanos cometidas pelo regime instaurado após o golpe de Estado que depôs o governo de “Isabelita” Perón, em 1976. Estima-se que ao menos 30 mil pessoas foram assassinadas pela ditadura, que durou até 1983. Dos nove indiciados, quatro foram absolvidos. Ainda assim — e apesar de uma série de indultos que viriam anos depois — o julgamento entrou para a história pela condenação dos outros cinco: Orlando Agosti (4 anos e 6 meses), Armando Lambruschini (8 anos) e Roberto Viola (17 anos). O ex-almirante Emilio Massera e o general e ex-presidente José Rafael Videla foram condenados à prisão perpétua. (A história do julgamento das juntas foi levada ao cinema com o filme Argentina, 1985, disponível na Amazon Prime.)
Brasil: anistia e impunidade
No Brasil, os militares que participaram da ditadura (1964–1985) nunca foram responsabilizados criminalmente pelos seus atos. Em 1979, o quinto e último presidente do período, João Batista Figueiredo, encaminhou ao Congresso Nacional a Lei da Anistia — que perdoava os crimes políticos cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Os próprios agentes da repressão — naquela altura já notórios pelas práticas de tortura e execuções — foram contemplados pela lei.
“A Lei da Anistia tinha um objetivo bem específico e claro: impedir que uma investigação dos crimes cometidos pelos agentes do regime fosse realizada”, diz Márcia de Toni, jornalista e cientista jurídica e social.
(As investigações sobre os crimes cometidos e as violações democráticas causadas pela ditadura vieram à tona apenas com a Comissão Nacional da Verdade, em 2011, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff.)
“Que moral tem o governo que exclui uns sob a alegação de terrorismo, mas que nem sequer submete os torturadores a processo? Estes, sim, jamais serão merecedores da piedade humana”, comentou na época o senador Leite Chaves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB–PR), partido de oposição à ditadura.
“A deposição de D. Pedro II ocorreu em um golpe militar. A partir desse período, vamos ter uma presença marcante de militares intervindo no poder. O movimento mais marcante foi o tenentismo, com militares de baixa patente pedindo reformas no país e lutando contra as oligarquias paulista e mineira que dominavam a chamada República Velha. Esses militares chegaram ao poder com Getúlio Vargas no golpe de Estado conhecido como Revolução de 1930”, explica De Toni.
A jornalista complementa: “Com a redemocratização, acreditou-se que os militares haviam aberto mão de sua pretensão de tutelar a política brasileira. Mas a eleição de Bolsonaro reavivou nas Forças Armadas o sentimento de que os militares são os guardiões dos valores nacionais e os mais moralmente preparados para a defesa do interesse público.”
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A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023
Quase meio século depois, as discussões envolvendo a anistia voltaram a reverberar nos bastidores do Congresso Nacional. Pela primeira vez desde a redemocratização, militares de alta patente e um ex-presidente da República estão sendo investigados por conspiração contra o Estado Democrático de Direito. A invasão de cerca de 4 mil bolsonaristas às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, desencadeou uma onda de processos, revelações antidemocráticas e pedidos de prisão que escancararam o envolvimento de membros das Forças Armadas em articulações para subverter o resultado das eleições de 2022. Segundo relatórios da Polícia Federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro contribuiu diretamente para a trama golpista.
O cientista político Marcelo Damasceno diz que a tentativa de golpe possui raízes mais profundas do que uma simples ideologia política:
“A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi articulada por meio de uma mobilização crescente e planejada de manifestantes bolsonaristas — que, para mim, vão além do bolsonarismo, pois demonstraram ser pessoas contrárias à democracia, algo muito maior do que apenas uma ideologia política.”
Ele ainda detalha o passo a passo da tentativa de golpe:
“Segundo o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, o número de pessoas no acampamento no Setor Militar Urbano saltou de cerca de 300 nos primeiros cinco dias do ano para 5.500 no dia anterior ao ocorrido. Esse acampamento, montado ilegalmente em uma área de servidão militar, serviu como base de organização para os atos.”
Ao todo, 34 pessoas foram denunciadas pela PF. O ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete acusados estão presentes no já julgado núcleo 1, chamado de “núcleo crucial”. Segundo Damasceno , o grupo teve papel central na organização da tentativa de golpe:
“Ele (o núcleo 1) foi responsável pelas principais decisões e ações, como a disseminação de desinformação sobre o processo eleitoral e as tentativas de cooptar o apoio do Exército.”
Dos núcleos restantes, apenas o núcleo 2 foi julgado e, por unanimidade, todos os seis integrantes foram tornados réus. Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o núcleo em questão é acusado de gerir ações a fim de sustentar a permanência ilegítima do antigo governo.

No Brasil, os militares que participaram da ditadura (1964–1985) nunca foram responsabilizados criminalmente pelos seus atos. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Impacto histórico e perspectivas futuras
O processo de levar militares e um ex-presidente ao banco dos réus por crimes contra a democracia representa um esforço inédito da Justiça brasileira com o intuito de mudar o histórico de impunidade no país. A depender dos desdobramentos, este julgamento pode fortalecer a Justiça e reafirmar a premissa fundante do Estado de Direito: de que todos são iguais perante a lei. Um fato importante para o funcionamento da democracia brasileira.
No último dia 6 de abril, Bolsonaro participou de uma manifestação na Avenida Paulista e voltou a pedir anistia para os condenados de 8 de janeiro. Os relatórios do Supremo Tribunal Federal, contudo, apresentam dados alarmantes: das mais de duas mil pessoas investigadas por participar dos atentados aos prédios dos Três Poderes, 898 já foram responsabilizadas até o momento. Destas, 371 foram condenadas e outras 527 admitiram a prática de crimes menos graves.
O STF tem a expectativa de que a ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro comece a ser julgada entre setembro e outubro.