As inovações e promessas científicas no estudo do sangue esbarram nas desigualdades regionais e nos critérios históricos de exclusão
No Brasil, o sexto mês do ano é marcado pela campanha Junho Vermelho, que tem como objetivo conscientizar a população sobre a importância da doação de sangue. Nesse período, as ações se intensificam e ganham visibilidade, ao mesmo tempo em que avanços científicos e tecnológicos ampliam o conhecimento e as possibilidades relacionadas a essa prática. No entanto, antes de projetar o futuro da doação, é essencial compreender como o processo ocorre atualmente.
A doação de sangue no país segue protocolos clínicos rigorosos, baseados em critérios que vão desde o histórico de saúde, idade e uso de medicamentos até comportamentos de risco, como uso de drogas e realização de tatuagens. Esses critérios visam garantir a segurança sorológica, protegendo tanto quem doa quanto quem recebe. O biólogo Carlos Eduardo Fedeli destaca que conhecer o perfil sorológico do doador é fundamental para assegurar a confiabilidade das transfusões e a integridade do receptor.
Esse processo de triagem, respaldado por normas da Anvisa e da Organização Mundial da Saúde, assegura que o sangue coletado apresente risco minimizado de contaminação por patógenos, além de garantir a compatibilidade adequada entre doador e receptor. Somente com essa base sólida e regulamentada é que novas tecnologias podem ser incorporadas como facilitadoras ou inovações no processo de doação.
Ciência entra em cena
Apesar da boa aderência de doações, pesquisadores ao redor do mundo destacam duas linhas de pesquisa por seu potencial de aprimorar o sistema de transfusões: uma delas estuda o uso de enzimas bacterianas para remover os antígenos do sangue e transformá-lo em sangue tipo O, eliminando diretamente os responsáveis pela restrição de compatibilidade, e a outra sugere a criação de um sangue artificial que irá imitar o funcionamento das células sanguíneas humanas.
A primeira linha de pesquisa investiga o uso de enzimas extraídas de bactérias intestinais para remover os antígenos A/B das hemácias e convertê-las em tipo O, sangue universal. Essa tecnologia, ainda em estágio experimental, tem se mostrado promissora para racionalizar estoques dos hemocentros. “Isso otimizaria a utilização dos produtos em estoque, porém a perspectiva não é imediata já que há necessidade de continuar as pesquisas para efetivar essa possibilidade”, comenta o biomédico Luís Henrique Cardoso.
Na segunda linha, os cientistas estudam a possibilidade da criação de um sangue artificial usando soluções sintéticas ou semissintéticas. Por enquanto, esse projeto utiliza nanopartículas de hemoglobina encapsuladas em estrutura lipídica para reproduzir o sangue artificial em roedores e coelhos, demonstrando precisão ao imitar a habilidade de transportar oxigênio das hemácias naturais e promete uma resposta rápida em emergências. Mas, ainda em fase pré-clínica, esse estudo deve avançar para testes em humanos e obter aprovação dos órgãos reguladores.
O biólogo Carlos Eduardo e o biomédico Luís Henrique compartilham uma mesma avaliação: apesar do potencial das inovações em curso, a aplicação prática dessas tecnologias ainda enfrenta barreiras significativas. O desenvolvimento de sangue artificial ou a modificação de hemácias por enzimas envolve altos custos, validação regulatória complexa e infraestrutura adequada para implementação. “Os avanços existem, mas são complexos, caros e distantes do uso clínico cotidiano”, afirma Fedeli.
No contexto brasileiro, a preocupação é ainda mais acentuada devido às desigualdades regionais. Carlos ressalta que, antes de incorporar qualquer inovação tecnológica, é necessário garantir a padronização dos serviços já existentes. “Antes de pensar em aplicar essas inovações, é preciso garantir que o básico chegue a todos os bancos de sangue do país.” A expectativa é que, mesmo quando aprovadas, essas tecnologias tendam a ser concentradas inicialmente em centros urbanos e de alta complexidade, ampliando temporariamente a assimetria no acesso.
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Infraestrutura desigual
Para Fedeli, a desigualdade estrutural dos serviços de hemoterapia no Brasil impõe uma barreira concreta à adoção de qualquer inovação. Essa preocupação é refletida em dados: a maior parte dos hemocentros com estrutura técnico-laboratorial mais avançada está concentrada nas capitais e grandes centros urbanos, especialmente nas regiões Sul e Sudeste.
Por outro lado, as unidades presentes no Norte, Nordeste e áreas interioranas frequentemente enfrentam limitações operacionais, falta de equipamentos, carência de profissionais especializados e dificuldades logísticas para transporte e armazenamento.
Nessas regiões, muitas vezes, os postos de coleta funcionam apenas como pontos de entrada, dependendo de centros maiores para as etapas subsequentes, o que compromete a agilidade e torna o sistema mais vulnerável a interrupções. O biomédico Cardoso reforça a avaliação. “A implementação envolve custos, continuidade de pesquisas e finalmente a regulamentação para ser aplicado com segurança. Ainda mais pensando em um país como o Brasil, onde as desigualdades sociais são profundas.”
Mesmo com o avanço científico e a possível aprovação dessas tecnologias, sua aplicação tende a se restringir, num primeiro momento, aos centros com maior infraestrutura, ampliando o risco de aprofundar as disparidades regionais no acesso à transfusão de sangue.
Apesar dos avanços técnicos e das barreiras estruturais que limitam a aplicação das inovações, há um outro fator decisivo para o futuro da doação de sangue: o perfil de quem está autorizado a doar. Se por um lado a ciência desenvolve novas possibilidades, por outro, os critérios clínicos e normativos que definem quem pode contribuir com o sistema hemoterápico nem sempre foram isentos de vieses. A construção social e histórica desses critérios revela que a exclusão não se deu apenas por razões sanitárias, mas também por fatores culturais e morais. É nesse ponto que a discussão sobre inclusão se torna essencial para entender como a ciência, a política e a sociedade moldam e limitam o acesso à doação.
O futuro das doações de sangue
O perfil de um doador é construído com base em critérios clínicos de saúde, como idade, uso de medicamentos e doenças. Comportamentos de risco também são avaliados, por exemplo uso recente de drogas e a realização de tatuagens. Essas restrições e recomendações são o que viabilizam a segurança do processo de doação, mas nem sempre os critérios foram neutros de preconceitos.
Com o surto de AIDS nos anos 1980, principalmente entre homens homossexuais, surgiu um estigma sobre a comunidade LGBTQIA + e suas possibilidades de doar sangue. A partir dessa época, a comunidade médica e a legislação passaram a considerar homens gays como grupo de risco, com justificativa baseada nos altos índices de HIV.
À medida que essa classificação parecia sanitária em tempos de crise, revelou sua faceta preconceituosa ao se manter mesmo após 30 anos do surto. A exclusão do grupo como doadores tornou-se pauta de diversos protestos da comunidade LGBTQIA + brasileira e mundial, que cobravam da comunidade médica e política uma nova postura.
A ciência já havia avançado nos testes de identificação da doença e na conscientização de que o uso de preservativo ajuda a evitar a proliferação do vírus. O problema era o estigma e o preconceito. Foi necessária outra crise mundial para que mudanças efetivas ocorressem. Durante a pandemia de Covid-19, os bancos de sangue enfrentaram severas baixas, o que motivou uma reavaliação das restrições, visando ampliar as doações. Apenas em 2020, 40 anos após a crise da AIDS, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais as restrições impostas a homens homossexuais, pois eram baseadas na orientação sexual e não em critérios clínicos.
A demora na retirada do estigma “grupo de risco” evidencia a dependência da ciência na sociedade em que é aplicada. As tecnologias avançam, mas a mentalidade coletiva precisa evoluir também. Doar é um ato empático que salva vidas; as novas tecnologias podem sim ajudar mais pessoas, mas sem o apoio da população, a ciência não realiza milagres.
Nesse sentido, é imprescindível reconhecer que a ampliação do perfil dos doadores deve ser acompanhada de esforços para fidelizá-los. Manter uma base estável de doadores regulares é um desafio que vai além da simples autorização clínica: requer políticas eficazes de acolhimento, comunicação transparente e combate contínuo ao preconceito, para que o ato de doar sangue seja encarado como um compromisso social e não um evento pontual.
“O doador de repetição é alguém já conhecido pelo banco de sangue, o que proporciona maior segurança do ponto de vista sorológico. Como seu histórico é acompanhado ao longo do tempo, as chances de detectar precocemente qualquer alteração ou risco são maiores, tornando o processo mais confiável para todos os envolvidos”, enfatiza Carlos Eduardo Fedeli.
A fidelização dos doadores contribui para a segurança do abastecimento e para a eficiência do sistema hemoterápico, evitando a dependência de campanhas emergenciais que podem ser insuficientes em momentos críticos. Portanto, superar preconceitos históricos e construir uma cultura inclusiva e sustentável de doação são passos fundamentais para garantir que o futuro da doação de sangue dependa, verdadeiramente, da diversidade e do engajamento da sociedade como um todo.