Tendências mercadológicas e sociais transformam o amor em espetáculo e fonte de lucro. Entenda como o romance virou negócio no século 21
Nos últimos anos, com o avanço progressivo da tecnologia, o uso de redes sociais se tornou cada vez mais comum entre jovens e adultos. O TikTok, por exemplo, plataforma conhecida mundialmente, acumulava mais de 1,50 bilhão de usuários em janeiro de 2025, o que tornava o aplicativo um dos mais acessados e utilizados no ranking de plataformas de mídia social do Data Reportal.
Na rede social, observa-se a divulgação de diversos conteúdos: gastronômico, político, cultural, entretenimento, entre outros. Porém, recentemente, houve um aumento significativo na propagação do que alguns podem chamar de “ditadura do relacionamento”. Afinal, o que o termo significa e o porquê ele afeta diariamente os consumidores do mundo digital?
A onda de conselhos amorosos, “regras” de como se comportar em um relacionamento e dicas de como ser uma boa namorada ou um bom parceiro se popularizou em mídias sociais e ganhou força a partir do engajamento de influenciadores conhecidos. O fenômeno começa rapidamente e se espalha de maneira ainda mais veloz – o indivíduo, seja homem ou mulher, baseia-se em uma crença pessoal para ditar a maneira como seus seguidores devem se relacionar nos dias de hoje, apoiando-se em uma falsa psicologia de valorização pessoal e amor próprio.
Um caso que ficou famoso há pouco tempo demonstra claramente o significado da expressão apresentada há pouco: Breno Faria, um influenciador digital, ganhou fama nas redes sociais após a criação de um quadro intitulado “Café com Teu Pai”, onde ele reproduz falas machistas como “mulheres que trabalham demais afastam a sua feminilidade” e reforça estereótipos sobre o papel da mulher na sociedade. Em seu perfil, Breno se intitula capaz de ajudar as mulheres a entenderem o comportamento masculino.
@obrenocop Homem é simples igual cachorro. Ele só precisa de 5 coisas… #cafecomteupai #cafecomdeuspai #relacionamentos #ofimdaficada ♬ som original – Breno Faria
O influenciador ainda divulga ao público uma MasterClass paga sobre como os homens pensam. Na página de compra do curso, escreve:
Eu vou te mostrar como nós realmente funcionamos nos relacionamentos, o que nos afasta, o que nos conecta, o que nos ativa – e o que nos faz perder o interesse.
Em conversa com Larissa Pelúcio, antropóloga e professora da Unesp, ela aborda sobre o que causa o surgimento dos Coachs de relacionamento e criadores de conteúdo que trazem essa problemática em seus vídeos.
A realidade não comporta mais aquele antigo modelo. Na questão de gênero, as mulheres têm pagado um preço muito mais alto.
Conclui, afirmando a capitalização do sofrimento amoroso do sexo feminino, que, historicamente, já foi excluído.
Muito além de Breno, citado acima, as mulheres também contribuem para a mesma problemática, mesmo que com um conteúdo diferente. Ana Luiza d’Ultra Vaz, conhecida nas redes sociais como Supervulgar, é uma maquiadora que ficou conhecida nas redes sociais por espalhar conselhos amorosos sobre relacionamentos tóxicos. Ao contrário do influenciador digital, que divulga um manual de como tratar um homem se quiser ser correspondida amorosamente, Ana discute em tom humorístico e irônico sobre como se afastar de relações tóxicas – e o que poderia ser tratado com responsabilidade e consciência social, acaba sendo abordado de forma superficial pela maquiadora. Estereótipos como o homem ser responsável por pagar a conta no primeiro encontro, caso contrário ele não serve para estar em um relacionamento, são constantemente propagados em seu perfil, discurso que incentiva o machismo e ignora completamente a autonomia feminina conquistada ao longo dos séculos.
@supervulgar♬ original sound – SUPERVULGAR
Os efeitos no público mais jovem também ficam claros: meninas se sentem coagidas a estar com alguém independente financeiramente e capaz de lhe proporcionar bens materiais, enquanto garotos que estão começando a carreira são pressionados a agir rapidamente ou “descartados” por suas parceiras, causando conflito.
A gamificação do amor moderno
Em tempos em que amar virou produto, a busca por parceiros se tornou um mero jogo. A antropóloga realizou uma pesquisa intitulada como “Uberização do amor”, onde analisa a forma como os aplicativos de relacionamento criaram um tipo de experiência afetiva: marcada por lógicas de consumo, rapidez e dependência.
Os famosos apps de namoro, vendidos como uma solução rápida e prática para os solteiros, estão em queda. As tendências globais do setor desaceleraram: houve recuo no número de downloads e na base de usuários ativos mensais. No Brasil, um levantamento do InfoMoney apontou uma queda de 24% no número de usuários ativos do Tinder entre 2022 e 2024. Os downloads semanais também caíram 23%, passando de 140 mil para 107 mil no mesmo período.
A queda expressiva no uso dos aplicativos pode ser explicada pela fadiga e frustração tão constante entre seus usuários. Larissa explica como a lógica de funcionamento de plataformas como o Tinder, Bumble e Hinge podem afetar os solteiros conectados.
“Esse ciclo de expectativas e recompensas presente nos apps está muito próximo da mecânica de um jogo. Isso desgasta. Fazendo com que o usuário crie uma dependência afetiva também do próximo click, das próximas notificações…” diz a antropóloga.
Todas as plataformas digitais de paquera operam com uma lógica semelhante: movimentos mecânicos repetidos — deslizar para curtir ou descartar pretendentes — até enfim alcançar o objetivo principal: o match. A partir daí, vêm as fases seguintes: conversas, encontros e, quem sabe, um possível namoro. Exatamente como em um jogo.
O match gera um pico de adrenalina que te mobiliza. Então você tem esse pico de emoção, essas trocas que podem ser bastante voláteis e que são feitas muitas vezes em momentos em que você está no trabalho, ou sentada esperando sua vez no médico (…) Aquilo se torna um momento de distração, assim como se joga paciência numa viagem de ônibus ou algum outro joguinho de celular para matar o tempo.
“Em seguida, as conversas se evaporam. Só que esses silêncios que se acumulam, eles também repercutem de uma maneira muito impactante para algumas pessoas, principalmente para aquelas pessoas que não atendem a esses padrões do mercado dos afetos, que já vem acumulando recusas, frustrações”, conclui a antropóloga.
Além das mecânicas gamificadas, a própria estética dos aplicativos, com perfis visualmente organizados, descrições curtas e foco nas fotos, reforça uma lógica de consumo rápido, onde o match parece mais uma compra do que uma conexão real. Toda essa gamificação impulsionada pelos apps é capaz de gerar fortes consequências para a autoestima dos indivíduos.
É como se a gente estivesse o tempo todo tendo que cumprir metas, se destacar, continuar em formação permanente. E, como também nos aplicativos, a gente passa a ser avaliadas e avaliados
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A monetização do afeto feminino e as consequências da idealização nas redes sociais
Dentro do que se chama de “amor em vitrine”, isto é, relacionamentos que são construídos e mantidos principalmente para exibição, com o objetivo de mostrar uma imagem de felicidade e perfeição ao público, existem as consequências da idealização de um amor romântico como os que vemos, por exemplo, nas narrativas de filmes ou nos conteúdos de influenciadores digitais.
A psicóloga Larissa Antunes aponta que essa exposição nas redes sociais amplia pressões internas e externas sobre a mulher para que o relacionamento aparente ser perfeito. Muitas internalizam crenças disfuncionais como: “Se meu relacionamento não for como o da fulana, estou falhando”. A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) nos ensina que essas crenças automáticas distorcidas podem gerar ansiedade, sentimento de inadequação e autocrítica.
Além disso, a cultura ensina as mulheres a assumirem o papel de cuidadoras emocionais — verdadeiras gestoras do clima afetivo de um relacionamento —, o que gera sobrecarga psíquica. Como sugere Larissa Antunes, questionar a ideia de que a responsabilidade do sucesso afetivo está unicamente nas mãos da mulher é um passo importante para o bem-estar relacional.
Esse cenário se complexifica quando olhamos para a forma como a mídia, o cinema e os próprios algoritmos das redes sociais reforçam roteiros idealizados. A mulher passa a projetar expectativas afetivas com base em narrativas ficcionais, muitas vezes irreais. Larissa Antunes define isso como “comparação social irrealista”, que cria um “script romântico disfuncional” — com crenças como: “o amor verdadeiro não exige esforço” ou “se ele me ama, ele adivinha o que eu sinto”. A frustração afetiva surge quando a vida real não corresponde ao roteiro idealizado.
A Psicologia Positiva, nesse sentido, propõe o cultivo de relações autênticas baseadas em confiança, comunicação e significado — e não na estética de uma vida perfeita. Uma crença substituta saudável, segundo Larissa Antunes, é: “Relacionamentos reais são construídos, não descobertos.”
Esses processos estão ligados a um marketing e propaganda da monetização do afeto feminino. É como se a mulher, em suas experiências e expectativas amorosas, fosse a protagonista de sua história — mas, sob uma ótica comercial, atuasse como gestora de uma marca: o próprio relacionamento. Essa narrativa é cuidadosamente construída para se tornar um ‘produto’ vendável e, muitas vezes, inatingível, exigindo dela uma performance constante para sustentar a ilusão da perfeição.
Nesse contexto, a “Economia e comercialização do amor”, discutida pela socióloga franco-israelense Eva Illouz, analisa justamente como o capitalismo transforma relações íntimas em produtos de consumo, inserindo os vínculos românticos na lógica mercadológica. A mulher idealiza moldes de relacionamento inspirados por campanhas, filmes e influenciadores, o que pode gerar uma distância entre realidade e expectativa emocional — e aumentar a pressão por corresponder a esses padrões.
Larissa Antunes também chama atenção para um fenômeno que ela descreve como “monetização simbólica do afeto”. Quando o afeto vira desempenho — algo a ser mostrado, curtido, comentado —, surgem sintomas de fadiga empática, ansiedade de desempenho afetivo e sentimento de desvalorização. Muitas mulheres foram socializadas para serem emocionalmente disponíveis mesmo quando emocionalmente exauridas. Segundo ela, uma ferramenta da TCC eficaz é mapear pensamentos automáticos do tipo “preciso ser sempre agradável” e trabalhar crenças de valor próprio desvinculadas do servir constante.
Nesse sistema, as redes sociais funcionam como vitrines de capital afetivo. Isso se manifesta no consumo de conteúdos ligados a casais, reforçando e estimulando a cobrança e comparação. São nesses relacionamentos “instagramáveis” que se impõe à mulher o papel de curadora dessa estética — a responsável por transformar seu relacionamento em conteúdo. Algo que pode ser curtido, comentado e compartilhado. Emoções viram conteúdo, e intimidade vira estratégia.
A mulher deixa de simplesmente viver o amor — ela precisa mostrar que está amando do jeito certo, bonito e organizado. Não basta ser amada; é preciso parecer amável — um estereótipo clássico dos filmes de romance dos anos 2000.
Ao mesmo tempo, esses padrões comportamentais fortalecem o que Eva Illouz chama de “capital emocional”, em que a capacidade de sentir e demonstrar afeto — historicamente atribuída às mulheres — se torna uma moeda social. Quanto mais “afetiva”, mais valiosa, uma valorização ambígua: ao mesmo tempo que coloca o afeto em destaque, exige dele uma entrega total, quase como uma performance infinita sem pausa nem descanso.
A construção da imagem feminina perfeita
As comédias românticas lideram, desde os anos 90, o topo do ranking de gêneros cinematográficos mais assistidos. Filmes como “Harry e Sally”, “Como Perder um Homem em 10 Dias”, “Como se Fosse a Primeira Vez” e “De Repente 30” são exemplos de produções aclamadas pelo público. Embora apresentem tramas diferentes, conflitos diversos e estética própria, há um elemento em comum: a manutenção da esperança do amor verdadeiro.

Matthew McConaughey e Kate Hudson em “Como Perder um Homem em 10 Dias” – (Foto: Divulgação/WarnerBros)
Foto: Divulgação/WarnerBros
O que, por si só, não se resume a algo negativo, traz consigo intenções implícitas arraigadas a valores já muito antigos. A ideia presente nesses filmes é a mulher, sagaz e inteligente, mas doce e apaixonante, que torna-se irresistível para o homem misterioso que, com a medida certa de paciência, maturidade e sensibilidade, se abre para ela, revelando um lado encantador que garantirá a união eterna e estável do casal.
Deu para perceber que toda a responsabilidade acerca do sucesso do relacionamento recai sobre a figura feminina? Pois é. Há uma construção minuciosa de uma mistura ideal e completamente irreal de delicadeza, charme e esperteza que eleva a mulher a um nível angelical. A união do possível sonho de viver um amor de cinema com a intenção de manter o estereótipo de “feminilidade perfeita” se une em um forte laço, resultando em blockbusters que alienam e constroem padrões impossíveis de serem atingidos.
A questão é que esse “molde” não é uma invenção recente. Levando em conta que vivemos em uma sociedade patriarcal, a existência feminina é definida em relação ao homem. Ou seja, ela é a mãe, a filha, a amante, a cuidadora. Estas posições sociais implicam que a mulher é feita para servir, agradar, reproduzir e, portanto, podem ser caracterizadas como submissas, puras, lindas e jovens, emotivas, sensíveis e castas.
Do imaginário forjado nos alicerces da tradição judaico-cristã à estética sentimental dos folhetins europeus, o feminino raramente foi associado à liberdade plena, ao desejo autônomo ou à completude. O catolicismo promoveu a associação da mulher como espelho da Virgem Maria, o que fundamenta expectativas de pudor e modéstia. Depois, com essa visão já instalada, a literatura seguiu o fluxo e, principalmente nos séculos XVIII e XIX consolidou na prosa e poesia, a imagem da amada frágil, por vezes até fantasmagórica de tão intangível e etérea que era. Essa linha de pensamento continuou a se propagar até os dias de hoje, formando a estrutura que vemos nas comédias românticas: a garota engraçada, desastrada, bela e sempre pronta para apresentar o amor para o homem emocionalmente instável.
Mas onde habita a verdade nisso tudo? De fato, as mulheres querem amar. Mas não só elas. É inerente a raça humana buscar pelo amor. Assim como dito por Frank Martela, filósofo e pesquisador, “o amor captura a natureza social humana e a nossa dependência no outro para a garantia do bem-estar”. Ou seja, precisamos do amor. E isso inclui todos. Amar não é uma particularidade, qualidade ou exigência exclusivamente feminina, é um chamado para todos os seres humanos.
Com a consolidação da Modernidade, os ideais machistas foram também se fortalecendo e, com ele, veio a redução da mulher ao ambiente doméstico. Percebe-se, então, um esforço social para manter a noção de feminilidade atrelada a valores que sustentam o patriarcado. De acordo com a psicóloga Larissa Antunes, a ideia de feminilidade dócil, submissa e emocionalmente disponível beneficia estruturas sociais que evitam a emancipação feminina. A profissional diz: “Esses valores: estética sobre essência, cuidado sobre poder, receptividade sobre agência, são ensinados como “virtudes femininas”, mas muitas vezes são mecanismos de contenção”.
Claro que com a chegada das ondas feministas e luta por direitos e igualdade, os mecanismos de manipulação tiveram de ser disfarçados, mas eles ainda existem. As mulheres não podem apresentar fraquezas, imperfeições. Não podem se irritar, se chatear, contrariar ou ter sentimentos negativos. E, se apresentam qualquer um desses traços – naturais a qualquer pessoa -, são imediatamente generalizados como “coisa de mulher”.
Um fortíssimo paradoxo é estabelecido pois, ao mesmo tempo em que o feminino tem de ser perfeito, a vulnerabilidade emocional, interligada à fraqueza, também é relacionada à mulher. São dois extremos. Ou um nível inacessível de plenitude, ou a mais básica instabilidade. Larissa aponta o perigo desta armadilha, afirmando que o feminino é colocado entre dois extremos. “Esse ciclo binário gera uma tensão psicológica constante, onde a mulher nunca pode “apenas ser”. A saída está em cultivar o direito de ser humana: falível, mutável, complexa. Isso reduz a autoexigência disfuncional e aumenta o bem-estar emocional.”
A concepção da “imagem feminina perfeita” foi construída a partir da reiteração de estereótipos que perpetuam valores misóginos e retiram destas quaisquer aberturas para se expressarem livremente. Criam divisões propagadas nos filmes, livros, revistas e diálogos que reforçam a necessidade de afastamento de um comportamento humano normal para a dedicação à um molde robotizado, seguindo a promessa falaciosa de que isso lhes trará uma linda história de amor e o encontro com a melhor versão de si mesmas.