Comemorar a morte de radicais: o debate sobre liberdade de expressão e extremismo - Revista Esquinas

Comemorar a morte de radicais: o debate sobre liberdade de expressão e extremismo

Por Lais Hidalgo : outubro 15, 2025

O extremismo é uma discussão que acompanha a sociedade desde o surgimento da política moderna. Foto: Tumisu/Pixabay

A morte de Charlie Kirk provoca debate sobre extremismo político, liberdade de expressão e o impacto das redes sociais na polarização

“A forma como você morre não redime a forma como você viveu.” Em missa celebrada na Igreja Batista de Washington, o pastor norte-americano Howard-John Wesley fez essa afirmação após lamentar a morte do influenciador Charlie Kirk. A manifestação logo viralizou nas redes. O religioso, que é um homem negro, condenou o assassinato brutal, mas não deixou passar em branco as atitudes de Kirk em vida, que muitas vezes ofenderam a comunidade na qual Wesley ministrava. O local é conhecido por ter raízes profundas na comunidade afro-americana e uma longa história de defesa da justiça social.

A manifestação do pastor ganhou destaque justamente por divergir da maioria dos conteúdos nas redes sobre o assunto. Enquanto alguns se mostravam indignados, outros celebravam o assassinato. O motivo? O extremismo de Kirk. Apesar de não ocupar um cargo político oficial, o republicano influenciava boa parte dos jovens conservadores dos Estados Unidos. Ele era ativo nos debates — muitos deles promovidos dentro de universidades — sobre temas pungentes como aborto, posse de armas, racismo, o genocídio palestino e imigração. Em declarações polêmicas, o conservador chegou a comparar a prática do aborto ao Holocausto e afirmou: “Se eu vejo um piloto negro, penso: espero que ele seja qualificado”.

O radicalismo político de Kirk foi usado como justificativa para a comemoração de sua morte. O resgate de falas do ativista inflamou ainda mais a discussão: “Acho que vale a pena ter o custo, infelizmente, de algumas mortes por armas de fogo a cada ano, para que possamos manter a Segunda Emenda e proteger nossos outros direitos dados por Deus. Isso é um acordo prudente. É racional”.

Redes sociais e a banalização da violência

O extremismo é uma discussão que acompanha a sociedade desde o surgimento da política moderna. As cabeças cortadas durante a Revolução Francesa são um exemplo de que não estamos diante de algo inédito. O fator realmente novo são as redes sociais. A hiperconectividade e a globalização trouxeram para o tabuleiro novas peças: um espaço inédito de circulação da informação, a possibilidade de criação e manipulação dessas informações e, mais recentemente, a era da pós-verdade. O alcance dos algoritmos, somado a uma sociedade doente e sem limites, forma a receita perfeita para a banalização da violência — tanto verbal quanto física.

“As redes têm papel muito importante na agudização dos antagonismos políticos.” A afirmação, feita pelo doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo André Kaysel, ressalta como os novos meios de comunicação estimulam bolhas que propagam a violência. O cientista político e docente da Unicamp destaca que as empresas que comandam essas mídias têm um grupo preferencial para colocar em evidência: a extrema direita. Esse destaque ocorre tanto pela estrutura algorítmica — que forma bolhas e difunde versões extremistas de informações que distorcem a realidade — quanto pela própria política dessas empresas. Kaysel explica que elas são “monopolistas do ponto de vista econômico”, ou seja, “se arquitetam para maximizar seus lucros, desenvolvendo um modelo de negócios que tem como corolário uma lei da selva informacional.”

Kaysel ainda enfatiza que os fenômenos de adoecimento mental em escala global têm uma forte relação com a economia. “Em uma sociedade em que as jornadas são longas e extenuantes, a insegurança no trabalho é gigantesca, a produção sindical e estatal recuam, e os trabalhadores enfrentam ambientes laborais precários. Nessa sociedade, pautada por uma intensa sensação de incerteza, é perfeitamente compreensível que haja profunda ansiedade e angústia — e que muito disso seja canalizado em discursos extremistas.”

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Liberdade de expressão e limites culturais

A escalada da violência política é um fator preocupante. Cada vez mais ataques são registrados no mundo, e o que assusta é a falta de humanidade nas reações. Quando a ativista e deputada Marielle Franco foi brutalmente assassinada em 2018, teve sua vida alvo de campanhas de desinformação, que resultaram na propagação de ódio e revolta nas redes. O ponto em comum nas manifestações a favor de assassinatos políticos, independentemente da vertente, é o questionamento: comemorar a morte de outro ser humano é liberdade de expressão?

O historiador Rafael Cardoso aponta que o conceito de liberdade é usado de forma deturpada atualmente, sendo aplicado “sem freios” e driblando os limites éticos e morais. Ele reafirma que a palavra “liberdade” tem uma história construída a partir da corrente filosófica e econômica do liberalismo europeu, que a definia como um direito natural. “Ali, a liberdade tinha desejo revolucionário.” Já nos séculos XIX e XX, o professor relata que o capitalismo se vale dessa premissa para torná-la inquestionável e até mesmo sagrada. O exemplo escolhido são os norte-americanos, que, segundo ele, têm o dogma liberal enraizado na cultura; assim, discursos de grupos hegemônicos e o sonho da meritocracia ganham força na ideia de exercer uma liberdade irrestrita. Cardoso indaga: “Desde quando a liberdade, que era revolucionária e burguesa, se transformou em liberdade de expressão, ao ponto de que nada do que eu diga me traga responsabilidades?”

Kaysel explica que o conceito é um elemento fundante das noções modernas de cidadania, mas que possui diferentes concepções sobre seus alcances e limites dentro das tradições de cada sociedade. O cientista político cita, assim como Cardoso, os Estados Unidos como um exemplo de entendimento amplo no quesito liberdade de expressão, devido à Primeira Emenda, e compara a definição brasileira à da Europa Ocidental, onde há restrições a discursos de ódio, como a criminalização do nazismo e do racismo. Essas definições refletem diferentes culturas sociais e políticas.

Essas limitações e reconhecimentos são recentes na história brasileira. Cardoso explica que, durante o processo de redemocratização — apoiado por diversos grupos minoritários, muitas vezes perseguidos — a Sociologia se deparou com um novo conceito importante: o lugar de fala. Aqueles que antes eram excluídos e marginalizados passaram a ter mais espaço na esfera política e social, e essa mesma responsabilidade, questionada por Cardoso, levou à criação de uma análise sobre a vigilância discursiva.

O impacto da vigilância discursiva e da polarização

Em contrapartida, outra parcela da população mais conservadora vai de encontro a esse discurso de vigilância enfatizado por minorias, pregando a ideia de liberdade de expressão indiscriminada. O professor da Unicamp vê a celebração da morte de Charlie Kirk, um promotor de discursos de ódio, como algo que deve ser analisado de forma mais profunda. Esses atos podem ser julgados pela filosofia moral e ética como repreensíveis. Mas o ponto-chave é refletir que, ao mesmo tempo, ocorre a instrumentalização dessas celebrações (ou supostas) pelo trumpismo. Paradoxalmente, os apoiadores do presidente — e ele próprio — defendem uma liberdade de expressão irrestrita sobre discursos de ódio, mas procuram censurar abertamente opiniões contrárias, perseguindo inclusive meios de comunicação que denunciam essa instrumentalização. A falta de um olhar atento ao caso leva a responsabilização do problema apenas à polarização entre dois extremos, o que, segundo ele, “não se verifica”.

Para ele, hoje, as plataformas pautadas por algoritmos e pelo alto grau de monopólio na circulação de informações contribuem para o declínio da esfera pública e o desgaste dos debates. Na visão de Kaysel, o debate não se reduz à comemoração de figuras extremistas, apesar de ela ser uma expressão dos antagonismos contemporâneos, mas sim a reflexão sobre “como e por que o extremismo, principalmente da direita, tem ganhado tanto espaço em democracias liberais. Parece que a resposta está na capacidade dela de fornecer horizontes de vida, visibilidade e, sobretudo, perspectiva de futuro para suas populações”.

Editado por Enzo Cipriano

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