Em um país com cerca de 47 milhões de empreendedores, os negócios se tornaram parte da rotina de vários brasileiros
Entre becos e vielas, avenidas e rodovias, há um elemento que já se homogenizou na paisagem urbana do Brasil: os negócios. Do ambulante da Avenida Paulista ao dono do banco Itaú, todo mundo é empreendedor. Nunca foi tão popular ter uma startup, fazer um briefing e se tornar um case de sucesso. Com cerca de um quinto da população brasileira respirando o ar dos negócios, não é exagero dizer que empreender virou o brazilian dream.
Empreendedorismo: uma realidade brasileira
Em um país com 213 milhões de habitantes, a quantidade de empreendedores representa cerca de uma a cada cinco pessoas. E, nesse grupo vasto de 47 milhões de brasileiros que empreendem, cerca de 29 milhões são empreendedores iniciais — aqueles cujos empreendimentos estão em fase inicial.
Os dados apresentados são do Global Entrepreneurship Monitor (GEM) 2024, uma pesquisa que mostra a evolução do empreendedorismo em dezenas de países. O relatório analisou o empreendedorismo no Brasil e comparou os números de 2024 com os de 2023.
De 2023 para 2024, houve um aumento de 4 milhões de empreendedores no país. Além disso, a pesquisa revelou um dado significativo sobre os empreendedores estabelecidos — aqueles que atuam em um negócio com mais de três anos e meio de existência: houve um crescimento de 8,2% para 13,2% em quatro anos.
O termo empreendedorismo, embora difundido no Brasil e presente na rotina de muitos trabalhadores, não surgiu nas últimas décadas. Henrique Costa, 43 anos, pós-doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), comenta sobre a história do empreendedorismo no país:
“O Brasil tem um passado de trabalho por conta própria muito extenso. O mercado de trabalho do país sempre foi muito precário, desde a época do Brasil colonial. Muitas pessoas viviam de ocupações por conta própria e, eventualmente, se estabeleceram nas periferias das grandes cidades com seus pequenos comércios.”
O que Henrique explica é a adaptação do empreendedor conforme o tempo. Eles viveram diversos momentos históricos em que seus recursos precisaram ser moldados de acordo com as exigências de cada período. Por exemplo, se a economia estava concentrada na exportação de café, os empreendimentos também se voltavam para o café. Momentos em que a indústria ou os investimentos estrangeiros estavam em alta também não fugiram dessa lógica.
Além disso, o mercado empreendedor nunca se limitou apenas aos “grandes palcos”. Desde sempre, o empreendedorismo foi abraçado por aqueles que não conseguiam um emprego, seja nas grandes fazendas ou nos comércios das capitais.
“Ex-escravos e pobres não tinham acesso a esse mercado e viviam de trabalho autônomo. Conforme o Brasil foi crescendo, as pessoas mantiveram esse modo de trabalho”, explica o sociólogo sobre a popularização dessa forma de sustento.
Tanto para o dono de uma startup quanto para o vendedor de rua, o empreendedorismo pode ser uma realidade — e é Henrique Costa quem ilumina o tema:
“O empreendedorismo não é uma novidade. As pessoas começaram a usar essa denominação porque ela dá certa dignidade ao trabalho exercido pelo indivíduo, em vez de dizer que a pessoa vive de ‘viração’ — ou seja, de trabalhos avulsos. O brasileiro sempre se virou, mas agora isso é difundido como empreendedorismo.”
Geração empreendedora
Entre desejos e anseios, o empreendedorismo surge como esperança para recomeços. Parte dos trabalhadores com carteira assinada se divide entre migrar para um ambiente empreendedor ou continuar com os benefícios fixos — férias, 13º salário e seguro-desemprego em caso de dispensa involuntária. Contudo, mesmo com os direitos trabalhistas, nem sempre a satisfação aparece.
“No Brasil, mesmo quem tem direitos trabalhistas se sente, muitas vezes, insatisfeito com seu trabalho. Os jovens, principalmente, não têm paciência para esperar 30 anos para alcançar uma situação financeira que os satisfaça. É difícil exigir das pessoas que tenham paciência para crescer em suas carreiras, ainda mais em um mundo de produtos tão atrativos”, diz Henrique.
Segundo uma pesquisa do Datafolha, cerca de seis em cada dez brasileiros preferem ser autônomos a empregados. Entre os jovens de 16 a 24 anos, a porcentagem — que antes era de 59% — sobe para 69%. O GEM aponta que o número de empreendedores de 18 a 24 anos — cerca de 8 milhões — é hoje o maior da história do empreendedorismo brasileiro.
Não há jovem que não tenha familiaridade com redes sociais e saiba fazer marketing digital melhor que um baby boomer. Se alguém consegue criar um império pelo celular, é um jovem. Nenhuma inovação tecnológica ou ideia de negócio escapa do campo de visão deles.
“A internet abriu muitos caminhos para o empreendedorismo. As pessoas conseguem adotar ferramentas novas para empreender. Possibilidades que antes eram desconhecidas agora existem graças à internet, e isso já está sendo assimilado pelos empreendedores de maneira muito produtiva”, afirma.
Segundo o sociólogo, o jovem de hoje está menos apegado ao emprego formal e tem mais coragem de se aventurar no mercado de trabalho. Esse parece ser um ambiente com condições ideais para o surgimento de uma geração empreendedora.
O jovem já nasceu dentro desse novo mundo. Na língua do império globalizado que a tecnologia proporciona, eles são fluentes. Mais do que nunca, a juventude se impõe no mundo dos negócios como meio de realizar sonhos e mostrar que suas ideias podem fazer a diferença. Mas nem tudo são flores — e disso, Renato Silva entende.
Desafios de um jovem empreendedor
Renato Sena Silva, 23 anos, é vendedor ambulante de flores e passa boa parte das noites tentando ganhar a vida na Avenida Paulista. Empreender por necessidade surgiu como alternativa para sustentar o sonho de se tornar artista e evitar voltar ao trabalho formal. Sua mãe ficou apreensiva com a decisão, mas ele enxerga o emprego com carteira assinada como uma forma moderna de escravidão.
“O nome da escravidão contemporânea é CLT. Muitas pessoas trabalham para receber o mínimo. O Estado tira a vontade da pessoa de estudar por causa da carga horária abusiva.”
Com o ensino médio completo, Renato tentou cursar faculdade duas vezes, mas não conseguiu conciliar os estudos com o trabalho.
“A pessoa entra em um estado de burnout”.
Thiago Weslley, 29 anos, também vive do comércio de rua e hoje atua na produção e venda de mini donuts em São Paulo.
“Tô nessa luta faz tempo. Gosto de trabalhar com o público, foi a profissão que escolhi. Mas vejo muita gente que quer trabalhar, não tem estudo e acaba virando vítima da violência, tendo que baixar a cabeça e seguir.”
Empreender nas calçadas da cidade é mais do que vender: é carregar peso, enfrentar prejuízos, preconceito e até violência. Nos relatos de Renato e Thiago, surge uma denúncia clara:
“O maior problema não é a muvuca, é o preconceito e a fiscalização que nos marginaliza.”
Quem trabalha na rua sabe que o produto — flores, doces ou artesanato — é fruto de esforço e habilidade. Perder a mercadoria ou o ponto significa perder renda e dignidade.
Renato faz críticas à atuação da polícia e da fiscalização municipal. Ele distingue os policiais de rua, vistos como mais humanos, dos superiores hierárquicos, que tratam os ambulantes com desdém. Recentemente, ele foi vítima do “rapa” na Paulista: após ser abordado por pessoas que pediram para gravar um vídeo, teve toda a mercadoria apreendida pela prefeitura. As imagens circularam nas redes e geraram repercussão.
De volta ao trabalho, ele reflete:
“A fiscalização tem que começar de dentro pra fora. Antes de vir pra rua, a polícia precisa olhar os órgãos que dizem garantir segurança. Eu não tenho segurança aqui. Um dia o rapa pode vir, acabar com minha dignidade e ainda tentar me agredir.”
Mesmo com as dificuldades, Renato afirma querer estar na linha de frente por mudanças.
“Vou aguentar muita flechada, mas Deus já me deu o caminho. Nosso vídeo deu visibilidade para a luta dos ambulantes.”
No mesmo pensamento, Thiago cita o ditado:
“Uma andorinha só não faz verão.”
A sensação de desproteção, contudo, é constante. Thiago relata tentativas de assalto e agressões, ligando a violência e o preconceito às origens históricas do país.
“O Brasil só não é de primeiro mundo porque falta empatia e compaixão”, diz Thiago.
Renato complementa:
“Tem gente que paga um milhão num apartamento, mas não dá 500 reais pra quem limpa a casa.”
Ambos criticam o estigma de que ambulantes são marginais. Para eles, o comércio de rua gera acessibilidade, segurança e humaniza o cotidiano da cidade.
“Mexeu com o nosso cliente, mexeu com a gente”, resume Renato.
Apesar dos obstáculos, eles veem esperança. Thiago cita exemplos de cidades com maior organização e licenças para ambulantes:
“Dá pra integrar o empreendedor informal à economia formal sem sufocá-lo.”
Os relatos de Renato e Thiago escancaram uma realidade pouco retratada: a do trabalhador que transforma a rua em sustento e palco de resistência — sobrevivendo entre o sonho, a necessidade e a luta por dignidade.
A essência do empreendedorismo
“Não é só uma questão de necessidade. O brasileiro sempre soube se virar. As pessoas querem mais do que apenas garantir a própria sobrevivência. Querem ter satisfação com o trabalho ou com aquilo em que acreditam ter talento”, diz Henrique Costa.
O empreendedorismo tem diferentes facetas. O artigo “Motivações para o empreendedorismo: necessidade versus oportunidade?”, publicado no SciELO Brasil e produzido por Gláucia Vale, Victor Corrêa e Renato dos Reis, analisa os principais motivos que levam uma pessoa a empreender. Entre eles, duas razões se destacam: a oportunidade e a necessidade.
Antes de tratar dos motivos, o artigo faz uma breve descrição sobre os empreendedores:
“A visão de empreendedores como pessoas atentas às oportunidades encontra guarida no pensamento econômico neoclássico”, diz o texto.
Basicamente, os empreendedores são vistos como indivíduos atentos às necessidades do mercado e às suas oportunidades. Mas nem todos se enquadram nesse perfil.
Há pessoas que perderam seus empregos, que precisaram se refugiar em outros países e/ou que necessitam urgentemente de renda para sustentar a família. No mundo de hoje, observa-se, de maneira crescente, a presença de um tipo de empreendedor movido pela necessidade de sobrevivência — e é sobre isso que o artigo do SciELO Brasil trata:
“Indivíduos muitas vezes sem condições de se inserir […] no mercado formal de trabalho dirigem-se para a atividade empreendedora, buscando uma alternativa possível de trabalho e geração de renda.”
Embora a essência do empreendedorismo encontre suas raízes na oportunidade, a necessidade atua como grande motivadora para aqueles que encontram refúgio no ato de empreender.
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O futuro do mercado empreendedor
A burocracia e as taxas exigidas para abrir um negócio no Brasil não são as mais atrativas. Segundo o Índice Global de Complexidade Corporativa (GBCI) 2025, da TMF Group, o Brasil é o sexto país mais complexo para se fazer negócios.
De acordo com Henrique Costa:
“Eles [empreendedores] relatam muita dificuldade com burocracias e impostos. Quanto menos capital você tiver, mais difícil será acessar crédito. Os juros vão ser maiores. O Estado oferece o Sebrae e essas coisas, mas, para alguém que mal tem escolarização, esses cursos ainda são de difícil acesso.”
Mesmo com a alta colocação no GBCI, o país avançou em relação ao relatório de 2022, que o colocou em primeiro lugar.
Apesar dos pesares, como já afirmou o pós-doutorando da FFLCH, o jovem não quer viver uma vida CLT para ter segurança financeira. Segundo o relatório do GEM, há quatro anos seguidos o brasileiro está empreendendo cada vez mais.
Em um país com uma grande quantidade de jovens que nasceram em uma época em que muitos fatores apontam para o empreendedorismo, a tendência é que surjam cada vez mais novos empreendimentos no Brasil. Apesar do crescimento moderado, a economia brasileira se mantém estável desde a pandemia. Isso, aliado a uma população que nunca deixou de dar seu “jeitinho” e sempre teve ideias inovadoras de negócios, cria um ambiente favorável a um futuro empreendedor.