Mães solo enfrentam trâmites, estigmas e responsabilidades enquanto milhares de crianças nascem sem o pai registrado
A maternidade solo não é exceção no Brasil, é realidade cotidiana para milhares de mulheres. Em rotinas atravessadas por trabalho, cuidado, ausência e resistência, essas mães sustentam sozinhas o que, na prática, deveria ser uma responsabilidade compartilhada. Por trás de cada certidão sem o nome do pai, existe uma história de escolhas difíceis e sobrecarga constante.
Em um único ano, mais de 91 mil crianças nasceram sem o nome do pai na certidão — o retrato de um Brasil de mães solo. Enquanto milhares de crianças são registradas sem pai, mães solo seguem enfrentando sozinhas os trâmites, o estigma e a responsabilidade de criar uma família.
Uma história entre milhares
Uma gravidez inesperada levou Stefania de Jesus a conhecer um outro lado da vida. Ao descobrir a gravidez do pequeno Miguel apenas aos sete meses de gestação, Stefania foi tomada pelo nervosismo e pelo medo do futuro. Vinda de uma família formada por mulheres, sua rede de apoio foi essencial para enfrentar esse novo capítulo. Hoje, aos 27 anos, a vendedora reconhece que a situação difícil da época a fortaleceu.
Miguel, hoje com dois anos, não foi planejado. Temendo a reação do pai do menino, com quem não mantinha relação, Stefania optou por não incluir o nome dele na certidão. Mas o destino tinha outros planos. O encontro do pai com o menino aconteceu e, assim, surgiu o interesse em participar da criação. Uma realidade distante do que vive a maioria das mães solo no Brasil.
Os números evidenciam essa disparidade. Só em 2024, mais de 91 mil crianças nasceram sem o nome do pai na certidão, segundo o Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). São cerca de 460 registros diários sem identificação paterna, um retrato de um país historicamente marcado pelo abandono. Essa ausência não se limita à falta de um nome na certidão de nascimento: envolve responsabilidades afetivas, legais e financeiras que deixam lacunas profundas.
Existe uma burocracia? Como funcionam os procedimentos formais
No cartório, o procedimento para registrar uma criança é o mesmo, com ou sem pai. Contudo, caso a mãe indique o nome do suposto genitor, a Defensoria Pública é acionada para iniciar o procedimento de investigação de paternidade, como explica Leonardo Munari de Lima, presidente da Arpen São Paulo:
“Eles (Defensoria Pública) notificam o pai para se manifestar. Caso o pai negue a paternidade, será promovido um teste de paternidade mediante determinação judicial.”
Munari acrescenta que uma nova proposta no Código Civil, em andamento no Congresso Nacional, sugere inverter a lógica atual. Nela, quando a mãe declarar quem é o pai, seu nome entra automaticamente no registro da criança, cabendo a ele provar judicialmente que não é o genitor, e não ao sistema provar que ele é. “Essa experiência já foi adotada no Peru, com resultados concretos na redução da ausência de paternidade no registro de nascimento”, afirma o presidente.
O Portal da Transparência do Registro Civil também divulgou dados atualizados sobre mães solo, reconhecimento de paternidade e registros em cada estado e cidade do Brasil. Entre janeiro de 2024 e novembro de 2025, dos mais de 4 milhões de nascimentos no país, aproximadamente 320 mil não constam o nome do pai na certidão.
Para além das mudanças legislativas, o setor tem buscado humanizar o atendimento às famílias, visando o acolhimento delas em momentos de fragilidade. Segundo Munari, um dos próximos passos é a implementação do reconhecimento de paternidade de forma totalmente digital:
“Acredito que será um avanço grande para a população e para as mães, que muitas vezes têm vergonha de indicar o suposto pai no ato no cartório.”
Esse avanço tecnológico reforça a importância do registro civil para a garantia dos direitos da criança e a dignidade da mãe. Ter os dois genitores formalmente identificados na certidão de nascimento, mesmo que algum deles seja ausente, significa permitir que a criança tenha acesso a benefícios que a ela são de direito, como herança, pensão alimentícia e plano de saúde. A ideia da modernização é tornar o procedimento menos burocrático e aliviar parte da carga emocional que muitas mulheres carregam.
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Entre estigmas, uma mãe é silenciada
Ainda assim, ser mãe solo no Brasil é viver diariamente sob julgamento. Além dos desafios comuns à maternidade, essas mulheres enfrentam pressões externas por seus filhos não terem uma figura paterna presente.
“Elas relatam frequentemente a sensação de que todos os olhos estão voltados para elas apenas esperando um ‘erro’ na educação dos filhos para serem acusadas de negligentes, descuidadas ou péssimas mães”, conta a psicóloga Regina Grandis.
Stefania conhece bem esses olhares, de reprovação ou de pena. Para ela, no entanto, a maternidade não se define pela presença do pai: “Aconteceu. Tive o nosso bebê, que é lindo e maravilhoso. Não tenho essa chateação de não estar com o pai dele.”
Mesmo com o auxílio familiar e do pai da criança, que ajuda nas despesas e fica com o menino aos finais de semana, Stefania assume sozinha a maioria das demandas do filho. Qualquer imprevisto, ela depende de si para resolver. É uma mãe solo no dia a dia. Apesar das dificuldades que enfrenta, nunca achou que seria impossível criar Miguel sozinha. Cresceu vendo sua própria mãe cuidando de cinco meninas sem ajuda de nenhum homem, apenas da avó delas, que coincidentemente passou pela mesma situação.
“Então eu sempre escutei minha mãe e avó dizendo que criaram seus filhos sozinhas e falei, gente, não tem problema nenhum. Eu posso cuidar do meu filho sozinha também.”
Para as crianças, crescer sem um pai presente pode impactar de formas diferentes e varia conforme a realidade de cada uma e o contexto em que vive. Estudos na área da psicologia indicam que essa falta pode se manifestar de diversas maneiras, como inseguranças, desafios na formação da identidade e dificuldades na criação de vínculos ao longo da vida. Ainda assim, esses efeitos não são inevitáveis. Quando existe uma rede de apoio estável, é possível oferecer à criança um ambiente suficientemente seguro para que ela cresça com vínculos afetivos saudáveis.
Regina Grandis explica por que a estrutura familiar é menos determinante do que o ambiente em que essa infância é construída para a formação de uma pessoa:
“O que determina o fator de risco para o desenvolvimento integral da criança é o ambiente no qual ela está inserida. Se ela for criada por uma mãe solo que tem condições de proporcionar um ambiente seguro e amoroso, com apoio familiar, escolar e social e com políticas públicas adequadas, certamente sofrerá menos impactos durante seu desenvolvimento.”