O aumento da temperatura global, diretamente atrelado às mudanças climáticas, tem afetado diferentes setores da sociedade e também interfere no maior esporte do mundo: o futebol. Com o calor cada vez mais intenso, a prática pode se tornar impraticável em breve, e os impactos já devem ser sentidos na Copa do Mundo Masculina de 2026, que será realizada nos Estados Unidos, no Canadá e no México — países que sediarão o torneio durante o verão no Hemisfério Norte. A previsão de temperaturas elevadas pode ocasionar adiamentos ou até cancelamentos de partidas, algo inédito na história da competição.
A Copa de 2026 no limite do calor
Segundo o estudo Pitches in Peril (“Campos em Perigo”), produzido pelas organizações Football for Future, Common Goal e Jupiter Intelligence, a próxima edição da Copa do Mundo será disputada mais próxima dos chamados pontos de inflexão climática do que qualquer outro torneio da história — termo que se refere ao limite a partir do qual mudanças ambientais se tornam irreversíveis.
Já em 1994, quando os Estados Unidos sediaram sua primeira Copa do Mundo, o calor extremo interferiu no desempenho dos atletas e no bem-estar dos torcedores. A final, entre Brasil e Itália, foi disputada sob temperaturas próximas de 40 °C. Desde então, a temperatura média global aumentou 0,97 °C em três décadas, segundo dados da NASA.
Ainda de acordo com o estudo, até 2050, 11 dos 16 estádios da Copa de 2026 devem registrar temperaturas de WBGT acima de 35 °C, considerado o limite teórico da capacidade humana de adaptação ao calor extremo.
O WBGT é um índice utilizado por atletas e militares que combina temperatura, umidade, vento e radiação solar para estimar o impacto do clima no resfriamento do corpo humano. Nessas condições, atletas e torcedores ficam sujeitos a emergências médicas, como insolação e desidratação.
Com foco no impacto direto sobre o rendimento dos jogadores, o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte, Ricardo Galotti, explica as principais consequências.
“Durante o jogo, quando há maior perda hídrica, o atleta tem queda de performance. Com isso, ele se cansa mais rápido e fica mais predisposto a lesões, principalmente musculares. Começam a surgir sinais de cãibras, muito cansaço, e alguns podem até sentir enjoo. Mas o principal é a cãibra.”
Galotti também comenta as estratégias adotadas para reduzir os impactos do calor.
“Nos dias mais quentes, já fazemos uma estratégia de pré-hidratação maior do que em dias frios. Calculamos a hidratação de acordo com o peso do atleta.”
Na Copa do Mundo de 2022, no Catar, o torneio foi transferido para o fim do ano para evitar o verão no país-sede, quando as temperaturas ultrapassam os 50 °C, inviabilizando a prática esportiva ao ar livre.
Entre a negligência política e a climatização dos estádios
Mesmo diante desse cenário, é raro ver nações ou instituições do futebol se posicionando de forma incisiva sobre as causas ambientais. O meteorologista Alexandre Nascimento aponta a negligência em relação à natureza. “Se a gente olha para as grandes nações poluidoras, vê que praticamente nada está sendo feito. Pelo contrário: nos Estados Unidos, por exemplo, continua-se apostando no uso do petróleo como motor da economia”. O país sediou o Mundial de Clubes em 2025 e será sede da Copa de 2026 e das Olimpíadas de 2028.
Nascimento aponta duas possibilidades para os próximos torneios: “Ou você ajusta o calendário para uma localidade com clima menos extremo, ou climatiza os estádios. Esse é um cenário que, provavelmente, não vai mudar tão cedo.”
A climatização de arenas se tornou um tema relevante nos últimos anos, especialmente em competições realizadas em campo neutro. No entanto, a medida envolve impactos ambientais, desafios de engenharia e altos custos.
A pesquisadora Ana Maria Heuminski de Ávila, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (CEPAGRI), explica os impactos dessas instalações. “Mesmo os aparelhos de ar-condicionado mais modernos consomem muita energia. A produção de energia renovável já enfrenta dificuldades com extremos climáticos, como secas e chuvas intensas. Reduzir o uso de combustíveis fósseis é um grande desafio.”
Nascimento reforça a crítica: “A climatização é uma medida paliativa para pequenas localidades. Do ponto de vista ambiental, pode até agravar o problema.”
A preocupação vai além do calor. Sem medidas preventivas, casos como a paralisação por mais de 1h30 do jogo entre Chelsea e Benfica, no Mundial de Clubes, devido ao risco de tempestade, podem se tornar comuns. O impacto econômico também é relevante: segundo o estudo da Football for Future, até 2050 os estádios poderão gastar cerca de US$ 15,5 milhões por ano com alagamentos e US$ 7,7 milhões com danos causados por ventos.
O arquiteto Aníbal Coutinho, responsável pela Neo Química Arena, afirma que seria mais viável financeiramente construir novos estádios do que adaptar os antigos. “Só a cobertura necessária para permitir climatização pode custar mais do que o próprio estádio”.
Ele avalia que, por enquanto, as obras ainda não são urgentes no Sudeste. “Ainda é suportável jogar com estádios abertos, considerando o custo de implantação e o aumento indireto da emissão de carbono”.
Coutinho também minimiza o impacto ambiental dessas obras.
“O estádio representa uma fração mínima do consumo energético quando comparado a escritórios e indústrias.”
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Da elite à várzea: os mais afetados
Além dos grandes palcos, o futebol de base e o futebol de várzea também estão ameaçados. Segundo o estudo Pitches in Peril, 14 dos 18 campos analisados no Sul Global, além de áreas dos EUA e Europa, terão WBGT acima de 32 °C até 2050, tornando-se impróprios para atividade física em cerca de 1.250 dias no período.
Na várzea, a realidade já é sentida. O jogador Marcel, conhecido como Faísca, relata: “Dá até uma parada de cinco minutos para tomar água. Está mais abafado, mais difícil jogar bola.” O treinador Abenaldo Pereira, da Associação Desportiva Panelão, afirma que orienta seus atletas a reduzir o ritmo em dias quentes.
Ana Maria Heuminski defende maior engajamento dos atletas.
“O engajamento em campanhas de conscientização pode ajudar muito, porque o futebol atinge as grandes massas.”
O jogador Héctor Bellerín, do Real Bétis, também já se posicionou sobre o tema. Em entrevista à BBC, destacou o papel da política: “Votar significa colocar alguém no poder que irá implementar iniciativas verdes. As grandes empresas e o Estado precisam assumir a responsabilidade.”
O futebol, como o esporte mais popular do mundo, reflete com força os efeitos da crise climática. Os riscos atingem atletas, torcedores e toda a cadeia esportiva. Ao mesmo tempo, sua enorme capacidade de mobilização pode ser parte da solução. O futuro ainda é incerto, mas a resposta precisa ser imediata.