Entenda como uma alimentação verdadeiramente sustentável pode ser muito mais complexa do que simplesmente o abandono da proteína animal
O debate sobre o papel da carne na alimentação brasileira se intensificou com a crescente atenção a fatores climáticos, culturais e socioeconômicos. Entre defensores de dietas com menor impacto ambiental e aqueles que veem na proteína animal um símbolo de identidade e tradição, surge um questionamento central: como conciliar sustentabilidade, inclusão e pertencimento cultural na gastronomia?
Entre impacto ambiental e identidade
A discussão ganhou força após episódios recentes na COP 30, que reacenderam a tensão entre expectativas globais e práticas locais, como a recusa do chef Saulo Jennings em adaptar seu menu à proposta vegana de um convidado estrangeiro, Príncipe William. Em entrevista ao jornal O Globo, o chef afirmou que seu gesto buscou evidenciar a força dos ingredientes regionais como expressão de território e memória.
Pesquisas na área de alimentação e cultura reforçam essa perspectiva. Estudos como os de Laís Silveira Gusmão, doutora em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), mostram que a comida ultrapassa a função nutricional e opera como linguagem social e afetiva. Ela atua como construção cultural, indo além do aspecto biológico ao envolver normas, costumes e afetos.
A culinária se insere na sociedade como um traço de identidade, representando grupos específicos. Muito mais do que nutrição, a comida é um ato social, como o churrasco para um gaúcho ou o peixe para um ribeirinho. Para a pesquisadora, tudo que envolve o ato de compartilhar refeições é transmitido e aprendido na convivência entre gerações.
Em paralelo, especialistas e adeptos da gastronomia sustentável alertam para a necessidade de repensar o peso da pecuária no Brasil e ampliar o uso de ingredientes locais e de base vegetal, considerando a biodiversidade nacional e os impactos ambientais dos sistemas alimentares intensivos, especialmente da pecuária extensiva.
A carne no Brasil: cultura ou obrigação?
Apesar de o consumo de carne ocupar um espaço simbólico importante na mesa brasileira, muitos defendem que a gastronomia nacional é, em essência, mais diversa — sustentada por uma base vegetal frequentemente invisibilizada. Para a criadora de conteúdo e jornalista gastronômica Gabrielli Menezes, do UOL, o hábito de colocar proteína animal no prato fala mais alto do que a real necessidade nutricional.
“Existe um costume de colocar uma carne ali, mesmo que ela não seja exatamente boa. A gente dá atenção à carne e trata o resto como uma obrigação.”
A valorização da carne no Brasil também pesa no bolso: a proteína animal está entre os itens mais caros do mercado, dependendo da região do país. Ainda assim, há resistência a refeições sem carne. Para a jornalista, comer carne é um hábito brasileiro — não necessariamente algo que agrega sabor ou necessidade ao prato.
Segundo Menezes, esse comportamento se manifesta sobretudo no dia a dia e em restaurantes de rotina, como os tradicionais estabelecimentos por quilo. Para ela, a falta de preparo adequado e de cuidado na construção de sabores faz com que pratos vegetais pareçam menos atrativos ao consumidor médio. “As plantas e os vegetais têm uma riqueza de sabor muito maior e uma gama enorme de possibilidades de preparo. Quando bem executados, podem ser muito mais gostosos do que uma opção de carne.”
A discussão sobre sustentabilidade e pertencimento cultural também passa por entender o que realmente compõe a identidade alimentar brasileira. Apesar de muitos pratos típicos incluírem proteína animal, a presença do vegetal é central para a construção do sabor. Menezes destaca que a base cotidiana do brasileiro continua sendo “arroz, feijão e algum vegetal”, ingredientes naturalmente vegetarianos. “A nossa comida representa a nossa biodiversidade, que é muito rica, com muitas opções de frutas e legumes”.
No contexto urbano, essa percepção aparece nas escolhas individuais e na acessibilidade. A força econômica da pecuária influencia a ideia coletiva do que seria “uma refeição completa”. Para a jornalista, o marketing da indústria reforça a necessidade simbólica da carne. Ainda assim, ela questiona:
“Não acho que a gente precise de carne para se reconhecer como brasileiro. Acho que a gente precisa de mandioca, de milho, de azeite de dendê. De carne, não.”
A jornada de quem escolhe viver sem carne
Seja por saúde, questões ambientais ou bem-estar animal, o número de vegetarianos e veganos cresce no mundo. No Brasil, segundo pesquisa de 2024 da GFI Brazil (Good Food Institute Brasil), 36% da população reduziu o consumo de carne vermelha no ano anterior. Esse cenário impulsiona o vegetarianismo, termo que abrange qualquer dieta sem carne. As classificações variam conforme os alimentos de origem animal permitidos, originando categorias como ovolactovegetarianismo, lactovegetarianismo, ovovegetarianismo, vegetarianismo estrito e veganismo.
Sem ingerir carne há 50 anos, Fernanda Monteiro segue uma dieta lactovegetariana e acredita que ainda está no caminho para sua alimentação ideal. Influenciada pela irmã, deixou de comer carne na infância. “A minha irmã mais velha não é chegada à carne, meus sobrinhos, por incrível que pareça, alguns não gostam de carne. Acho que isso já está no nosso DNA.”
Apesar de ter nascido em um lar vegetariano, sua realidade atual é diferente. Casada com um gaúcho e mãe de uma adolescente, Fernanda é a única da casa que segue uma alimentação baseada em verduras, vegetais e frutas. Embora tenham utensílios separados para preparo de pratos com carne, a família mantém o hábito de fazer refeições juntos.
Morando na Carolina do Norte há quatro anos, a psicóloga precisa recorrer à própria cozinha para saborear a culinária brasileira. Apesar da forte presença de restaurantes brasileiros nos EUA, ela encontra poucas opções vegetarianas nos cardápios — e a falta de garantia de preparo livre de contaminação cruzada é um obstáculo constante.
“Eu vou mais para a salada, mas ainda dou uma boa vasculhada para ver se nem está próximo a alguma coisa que eu não coma. Mas dizer que eu confio… não, eu não confio”.
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Qual a importância do orgânico?
No Carrito Organic, restaurante da Zona Oeste paulista, o uso exclusivo de ingredientes orgânicos veio antes do vegetarianismo. Camila Borba, chef e proprietária, contou que retirou a carne do cardápio após adotar essa dieta em sua vida pessoal. Ainda assim, ela recusa o rótulo de “restaurante vegano”, pois acredita que “o veganismo engloba coisas não sustentáveis, ele é muito menos sustentável que o vegetarianismo”.
“Trabalhando com o orgânico, você se torna sustentável, porque respeita os ciclos naturais. No veganismo, você trabalha com produtos processados”. Para Borba, o uso de ingredientes como leite e ovo pode aproximar o público. “Muitas vezes, restaurantes desse nicho são ‘oito ou oitenta’, e eu quis criar algo que não fosse nem oito nem oitenta. O vegetarianismo é um caminho mais fácil para trazer pessoas.”
Outro ponto destacado é a recusa em usar ingredientes que simulem carne.
“Se eu trabalho com jaca, é jaca, não é carne de jaca. Eu quero que as coisas remetam ao que elas são.”
Mas os desafios são constantes. A comunicação com produtores e a sazonalidade dos ingredientes dificultam a estabilidade do cardápio.
“A diferença do orgânico é que quando não tem [um ingrediente], não tem. Não é nem mais caro, como o agronegócio. A natureza decidiu que não tem.”
Apesar dos obstáculos, Borba ressalta que essa política é um diferencial do Carrito. “A alimentação orgânica é a comida real, como deve ser. É o topo da pirâmide.”
É possível ser sustentável comendo carne?
Para Marisabel Woodman, chef do La Peruana e do Mares de La Peruana, sim, é possível. Para ela, a sustentabilidade depende da política de “descarte zero”, adotada em seus restaurantes. “A gente usa os ingredientes por completo. A cabeça do polvo, por exemplo, que muita gente descarta, a gente usa para bases, molhos. O Ceviche Campeón é feito com as cabeças”.
Outras estratégias incluem o descarte correto do lixo e o uso de materiais menos poluentes. Woodman destaca que não realiza delivery e utiliza embalagens sustentáveis para pedidos para viagem, reduzindo ao máximo o uso de plástico.
A chef também aposta em ingredientes nacionais, criando uma fusão entre as culinárias brasileira e peruana. Um exemplo é o ceviche vegetariano do La Peruana, feito com abobrinha, cogumelos e uma leche de tigre — caldo típico peruano — adaptada com tucupi.
Além disso, ela escolhe fornecedores cuidadosos “desde a sustentabilidade até o tratamento dos trabalhadores”. Woodman busca oferecer pratos agradáveis que “representem verdadeiramente os peruanos”. Segundo ela, “é importante termos um pouco da nossa cultura por perto, isso nos aproxima de casa. É difícil morar em outro país por muito tempo”.