Um panorama sobre o aborto revela duras leis e persistentes tradições na América Latina
Na América Latina, pelo menos 10% das mortes maternas vêm da prática de abortos inseguros, de acordo com uma pesquisa de 2016 publicada no periódico médico International Journal of Obstetrics & Gynaecology e realizada pelo Instituto GuttMacher, uma organização de pesquisas sobre saúde e direitos reprodutivos e sexuais dos Estados Unidos. Mesmo assim, a criminalização da prática ainda é costumeira na maior parte do continente, este que, proporcionalmente em conjunto com o Caribe, possui sua maior frequência: são 44 abortos a cada mil mulheres por ano, segundo dados da mesma instituição.
A cultura latina é alimentada pelo catolicismo desde que os ibéricos pisaram em seu solo. Ainda hoje, 67,5% da população é católica, como aponta a pesquisa sobre religiões da instituição chilena Latinobarometro, divulgada em 2014. Essa tradição religiosa é um dos fatores que dificultam a legalização da prática do aborto. “Há hoje uma confusão sobre laicidade que, de alguma maneira, atravanca o debate sério sobre aborto e sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, explica a antropóloga e professora da Universidade de Brasília, Debora Diniz.
As questões morais apontadas, no entanto, não impedem que os abortos aconteçam. Uma pesquisa da Organização Mundial de Saúde (OMS), lançada em setembro de 2017, aponta que 6,4 milhões de abortos foram realizados na América Latina no período entre 2010 e 2014. Desses casos, 76,4% foram procedimentos inseguros, apresentando algum tipo de risco à saúde da mulher.
O cenário
O aborto é legalizado independente da causa para interrupção da gravidez em apenas três países latino americanos: Guiana, Uruguai e Cuba, mas ainda assim, existem restrições. No Uruguai, a mulher deve ser residente no país por no mínimo dois anos para ter direito à realização do procedimento. Na Guiana, entre a 8ª e a 16ª semana de gestação, sua interrupção só é permitida se houver risco grave para a vida e saúde mental e física da mulher, estupro, HIV ou falha no uso de método contraceptivo dela e do parceiro, e um aval médico é exigido para que o procedimento seja autorizado. Por fim, em Cuba, após a 12ª semana, existem variações na legislação. Em casos de estupro, por exemplo, a gravidez pode ser interrompida até a 22ª semana. A exigência comum a qualquer uma das circunstâncias é a necessidade de um diagnóstico e uma declaração escrita do consentimento da mulher.
Além disso, o aborto também é liberado sem restrições até a 12ª semana da gestação em Porto Rico, território norte-americano no Caribe, e na Cidade do México (no resto do país, o procedimento segue criminalizado com exceção dos casos de risco de morte para a gestante, anomalia fetal ou estupro).
Em contraposição, o número de países em que a interrupção voluntária da gravidez é proibida ao todo em qualquer caso é maior. São seis as nações em que a prática é completamente criminalizada: El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname. Nos demais países do continente, a criminalização é suspensa em certos casos, que variam em cada país.
Enquanto alguns países lutam pela flexibilização das leis acerca da interrupção da gravidez, outros ainda convivem com regimentos extremamente duros. Uma gestante de El Salvador pode ser penalizada mesmo caso sofra um aborto espontâneo. Como foi nos casos de Glenda Xiomara Cruz e Mirna Ramírez, as duas foram sentenciadas à prisão após os juízes considerarem que elas deveriam ter “salvo o bebê”. Xiomara, com 19 anos em 2016, sofria de intensas dores abdominais e recorreu ao hospital em busca de ajuda. Sem saber que estava grávida, ela foi denunciada pela própria instituição de saúde e condenada a 10 anos de prisão. Um ano antes do episódio ocorrido com a jovem, Ramírez saía do cárcere, depois de 12 anos em privação de liberdade. A mulher havia dado à luz um bebê prematuro, no banheiro de sua casa e, quando pediu ajuda a uma vizinha, foi denunciada, acusada de ter tentado abortar a criança.
No Brasil, são três os casos que configuram a descriminalização do aborto: estupro, anencefalia do feto ou gestação que apresente risco à vida da mulher. Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru têm legislações a princípio semelhantes à brasileira, mas um ponto as difere: nesses países, a interrupção da gravidez também é descriminalizada considerando-se não apenas a saúde física da gestante, como também sua saúde mental – e não é necessário que ela tenha algum laudo psiquiátrico para isso.
Luta por saúde
É importante, no entanto, não tratar descriminalização e legalização como sinônimos. O primeiro caso consiste em deixar de considerar a mulher como criminosa. A obstetriz Ellen Vieira, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, ressalta a importância de se tratar a legalização do aborto como uma questão de saúde pública. “É a ilegalidade que mata, que não deixa a mulher ter segurança de ir para o hospital se precisar”, afirma e também defende que a ação governamental representaria uma inclusão da mulher no atendimento à saúde, sem deixá-la marginalizada ou vulnerável. Com a legalização do aborto, seria possível prevenir a mortalidade e inseri-las em sistemas de planejamento reprodutivo e prevenção de saúde. Tais resultados podem ser observados em países que já legalizaram o aborto: no Uruguai, o índice de mortalidade materna era de 19,1 a cada 100 mil nascidos vivos em 2015, o terceiro mais baixo da região, de acordo com informações da ONG Mujer y Salud en Uruguay (MYSU).
“Criminalização do aborto mata. Não é o aborto, é a criminalização que mata as mulheres”, completa a obstetriz. Localizado em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, o coletivo do qual ela faz parte é um ambulatório feminista de atendimento à saúde da mulher, criado em 1982 e que atende questões tanto de saúde física como mental. Vieira defende que, independente da legalização, o aborto acontece, por isso a importância de que o Governo garanta um procedimento seguro. A pesquisadora Debora Diniz concorda, e destaca. “As mulheres mais precarizadas, pobres, jovens, negras e indígenas são as que estão mais vulneráveis à experiência do aborto clandestino, correm maiores riscos de prisão, e também de saúde e vida.”
Um caso que reforça o posicionamento defendido por Vieira e Diniz é o de Ingriane Barbosa. A babá, de 30 anos, morreu em julho de 2018, após tentar interromper uma gestação em casa usando um talo de mamona. Ela só procurou ajuda médica quando seu quadro clínico já estava muito grave, o que mostra o medo de procurar atendimento clínico pela possibilidade de ser condenada, em um cenário com a criminalização do aborto. “Cuidar das mulheres sem o julgar o aborto protege a saúde”, conclui Ellen Vieira.
A falta de informação sobre o assunto também é um ponto a ser analisado. É importante que as mulheres tenham conhecimento sobre as situações em que têm direito ao aborto legalizado, bem como acesso à educação sexual, métodos contraceptivos e programas de planejamento reprodutivo e familiar.
Apesar de ainda ser uma questão polêmica, o tabu acerca da problemática da descriminalização do aborto tem sido quebrado, e o tema passa a ser alvo de crescentes debates ao redor do continente latinoamericano. Os exemplos mais recentes são Chile, Argentina e o próprio Brasil. No primeiro, a população assistiu a um significativo avanço no último ano: a interrupção voluntária da gravidez, proibida em qualquer caso até então, não é mais configurada como crime no país em caso de inviabilidade do feto, risco de vida para a mãe ou estupro. As mulheres argentinas, por sua vez, não viram seus protestos refletidos em mudanças na legislação – mesmo depois de aprovado no Congresso, o projeto de lei que legalizaria o aborto sem restrição de motivo até a 14ª semana não passou pelo Senado. Ainda assim, foram centenas de milhares de manifestantes cobrindo as ruas de Buenos Aires de verde, exigindo a legalização do aborto ao governo argentino e chamando a atenção para a causa. No Brasil, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 está sendo discutida no STF (Supremo Tribunal Federal), propondo uma alteração na lei atual, de forma a descriminalizar a interrupção de gestação até a 12ª semana.
Mesmo que algumas das recentes manifestações e debates não tenham alterado as legislações, tais movimentos foram responsáveis por incentivar a redução do estigma que ronda o tema. A campanha Eu vou contar, da Anis – Instituto de Bioética com apoio da organização Think Olga, convocou mulheres que tivessem realizado aborto há mais de 8 anos (tempo necessário para prescrever o crime de aborto no Brasil) a compartilhar suas histórias. “Ouvir e contar histórias de mulheres é um ato de resistência à perversidade da criminalização do aborto”, afirma Debora Diniz. “Acreditamos que pudemos de alguma maneira contribuir para a redução de danos pós-aborto e atuar na redução do estigma. Essa aproximação de realidades, de trajetórias, é muito importante para entendermos que essas mulheres precisam de acolhimento, não da lei penal”, conclui a antropóloga.