Os estereótipos de muçulmanos dentro da sociedade brasileira
A atual conjuntura internacional está marcada por conflitos religiosos, divergências diplomáticas, polarizações, extremismos e intolerâncias. A incidência de ataques terroristas é um dos temas que ganha destaque na mídia. Alguns são atribuídos a fundamentalistas islâmicos, o que colaborou para a formação de diversos estereótipos em relação à cultura muçulmana, a dos praticantes da religião islã.
Em relação ao islamismo, mostra-se nos meios de comunicação majoritariamente aspectos negativos, retratando notícias que têm como foco atos de violência e extremismo, deixando de considerar aspectos culturais e religiosos que envolvem esse grupo. A impressão de que sociedade seria opressora à figura feminina e composta apenas por terroristas, por exemplo, são representações que vão de encontro à realidade dessa comunidade.
A questão do véu
Entre os principais estereótipos, o questionamento ao uso do véu (hijab, em árabe) se destaca. “As pessoas associam o uso do lenço, a cobertura da cabeça, com a opressão”, afirma a antropóloga especializada em cultura muçulmana Francirosy Barbosa. “Isso [o véu] é uma determinação divina, mas cabe à mulher dizer quando e como ela deve usar”.
O imaginário de que essas mulheres são reprimidas gera, muitas vezes, a impressão equivocada de que seus papéis sociais dentro da religião se limitam à dedicação exclusiva ao ambiente familiar. “Hoje em dia, as mulheres são profissionais, trabalhadoras, parceiras de seus maridos”, explica a antropóloga. Carima Orra, pedagoga praticante do islã de 24 anos, por exemplo, opta pelo uso da vestimenta e lamenta o fato desses preconceitos existirem. “Acham que mulher muçulmana fica em casa, lavando roupa e só. Mas não é bem assim”, critica. Orra contou que já passou por uma experiência de preconceito devido à religião. Em uma entrevista de emprego para uma escola de metodologia norte-americana, embora tenha alcançado todos os requisitos exigidos, era necessário que ela não utilizasse o véu no ambiente de trabalho de acordo com a instituição. Ela explicou que não poderia tirar a vestimenta e recusou a proposta.
“As pessoas acham que lenço cobre pensamento. Acham que usar biquíni é ter liberdade e usar lenço é ser reprimido”, diz Barbosa, reforçando a visão negativa que algumas pessoas têm em relação ao hijab.
O terrorismo
O ataque ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001 foi um marco que transformou a geopolítica internacional, modificando a relação do Ocidente com o Oriente. Métodos de segurança foram reforçados, como a fiscalização das bagagens de mão antes dos voos, a restrição do porte de líquidos de até cem mililitros e a verificação das malas despachadas. De acordo com o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, a xenofobia se intensificou consideravelmente, de forma que muitos imigrantes passaram a ser cada vez mais impedidos de entrar e permanecer, principalmente, nos Estados Unidos e na Europa.
Durante os últimos anos, outros acontecimentos fortaleceram a noção de que seguidores da cultura muçulmana estariam relacionados ao terrorismo. São alguns exemplos disso o massacre à sede do jornal francês Charlie Hebdo em janeiro de 2015, o fuzilamento em massa na casa de shows Bataclan, em Paris, no mesmo ano e o ataque à boate LGBT em Orlando, todos reivindicados por grupos fundamentalistas islâmicos.
Certos grupos de fama internacional se autodenominam muçulmanos, como a Al-Qaeda, o Boko Haram e o Estado Islâmico. Apesar de realizarem práticas violentas com a finalidade de causar medo, pânico e histeria, eles não espelham a cultura como um todo. “O Alcorão [livro sagrado do islã] fala que, se você matar uma pessoa, é como se tivesse matado toda a humanidade”, frisa Carima Orra. Mohammed Barakat, por sua vez, xeique da Mesquita Brasil, no Centro de São Paulo, afirma que os agentes dessas ações estão muito distantes de Deus e da religião. “O profeta diz que o muçulmano não é muçulmano se as pessoas não estiverem protegidas de sua língua e de sua mão”, sugere Barakat. Nas suas palavras, um muçulmano não deve agredir outro nem verbal nem fisicamente.
Os relacionamentos amorosos
Outro rótulo construído é de que todos os homens muçulmanos têm diversas mulheres. Entretanto, existem regras específicas determinadas no Alcorão para que a poligamia seja possível. Primeiramente, há um limite de quatro esposas por homem. Em segundo lugar, ele deve ter condições financeiras para sustentar e ser sexualmente ativo com todas. Um motivo pelo qual um marido pode buscar outra esposa, por exemplo, são os casos de problemas de saúde, em que a mulher é infértil ou está gravemente doente. Nesses casos, portanto, o homem passa a conviver com outra mulher sem abandonar a anterior.
É comum pensar que casamentos arranjados, aqueles que se formam por acordos entre as famílias, são maioria na cultura muçulmana. Porém, a religião não possui essa exigência. O que ocorre, assim como em diversas outras culturas, são indicações e preferências por parte dos pais, que oferecem conselhos aos filhos. “Os casamentos arranjados são um elemento da cultura, e não da religião”, destaca Orra.
Soha Chabrawi, de 36 anos, é doutora em Neurociência e Cognição pela Universidade Federal do ABC. “Essa impressão acontece porque o brasileiro tem um conceito de islã que vem do Líbano. Lá, isso é uma cultura. É a mesma coisa que dizer que as mulheres brasileiras sambam e que isso tem a ver com o catolicismo, uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra, né?”, reforça Chabrawi.
Árabes ou muçulmanos?
A nacionalidade é, muitas vezes, diretamente relacionada à cultura muçulmana, de modo que se acredita que todo árabe é muçulmano e todo muçulmano, árabe. Essa confusão acontece porque a revelação da religião se deu na Arábia Saudita, mais especificamente na cidade de Meca, onde a língua oficial é o árabe. No entanto, de acordo com os livros Sociologia do Islã, de Enzo Pacce, e Islã e Civilização, de Paulo Hilu Pinto, o maior número de seguidores do islã encontra-se na Ásia, principalmente na Indonésia, em Bangladesh e na Índia. A segunda maior comunidade muçulmana é africana, enquanto a comunidade árabe ocupa somente a terceira posição.
“Muçulmano” designa o indivíduo praticante do islamismo, que pode estar localizado em qualquer lugar do mundo. Por outro lado, árabe é aquele que descende do povo habitante da Península Arábica, fala a língua e faz parte da Liga Árabe. É um termo que não se relaciona com a religião.
Sobre essa questão, Soha Chabrawi defende que o que gera esse estereótipo é a ignorância. “As pessoas, em geral, não vão atrás da informação. Acham que toda pessoa que nasce em país árabe é muçulmana”, explica. Para reforçar sua opinião, ela utiliza o Líbano, mais uma vez, como exemplo: país árabe, porém de maioria cristã, e não muçulmana.
Tendo em vista todos esses aspectos, é preciso estimular a busca de informações que possam romper com esses estereótipos. “O preconceito existe principalmente pela falta de conhecimento”, aponta a antropóloga Francirosy Barbosa. O acesso ao conhecimento permite a mudança de posturas sociais, que contribuem para uma melhor convivência com as diferenças e estimula a empatia.