Como uma das maiores instituições não-governamentais brasileiras surgiu das mãos do médico Sérgio Petrilli, que não mediu esforços para ajudar crianças diagnosticadas com câncer
“Optei por voltar ao Brasil porque eu achei melhor. É aquela história de ‘é melhor ser cabeça de sardinha do que rabo de tubarão’. Eu queria voltar para cá e fazer alguma coisa que mais pessoas pudessem usufruir, então construí uma ideia de fazer para o Brasil o que eu tinha visto lá fora”, relata o médico Sérgio Petrilli, que hoje, aos 71 anos, relembra o início de sua trajetória junto ao Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graacc). No seu escritório, localizado na Vila Mariana, na Grande São Paulo, ele conta como surgiu o interesse pela medicina e, mais especificamente, pela área de oncologia pediátrica, sendo um dos pioneiros no ramo.
Depois de ter vendido seu carro e o de sua mulher, Petrilli partiu com a família com destino a uma temporada de estudos no exterior, onde teve contato com um modelo de gestão hospitalar ainda inexistente no Brasil. Isso alimentou sua vontade de voltar para ajudar o máximo de pessoas possíveis. Em 1991, fundou o Graacc, baseado em um modelo de organização não governamental em parceria técnico-científica com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Desde então, o hospital se tornou um dos braços da saúde pública brasileira, além de ter se consolidado como exemplo no campo da medicina. O médico também se orgulha de ter firmado, em seu hospital, um modelo de tratamento mais humano e menos traumático para as crianças.
ESQUINAS Durante sua carreira médica, de onde surgiu o interesse pela oncologia pediátrica?
Conheci um médico na minha residência de pediatria que chamava Aloisio Corradini. Eu gostava muito do jeito que ele trabalhava, uma pessoa muito atenciosa, muito humana, tinha um jeito de trabalhar com os pacientes e com as famílias muito importante. Sempre quis trabalhar com ele e um dia fui convidado. Só que o trabalho era exatamente num hospital de câncer e foi lá que despertei meu interesse pela oncologia pediátrica, numa época em que ninguém seguia a carreira de medicina para essa área.
ESQUINAS A partir daí, surgiu a motivação para criar um projeto como o Graacc, certo?
Comecei em 1974, no Hospital do Câncer, mas era muito difícil o tipo de atendimento, éramos muito carentes em equipamentos, as enfermarias grandes, a maioria das crianças morriam, não existiam grandes recursos no Brasil. Quatro anos depois, tive a oportunidade de conhecer uma médica, Norma Wollner, que trabalhava no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, nos Estados Unidos. Ela aceitou que eu fosse fazer um ano de observação no Memorial. Eu não poderia tratar os doentes, mas um clínico pode ser um observador, participar das reuniões, das discussões, acompanhar os protocolos e estudar com tudo isso. Vendi meu carro, o da minha mulher e do nosso bolso mesmo a gente foi embora com os dois filhos, um de 4 e outro de 3 anos, para ficar um ano em Nova York. Lá eu conheci um jeito diferente de ver as crianças com câncer, como o americano tratava essas crianças, como eram as condições. No fim, optei por voltar ao Brasil porque eu achei melhor. É aquela história de ‘é melhor ser cabeça de sardinha do que rabo de tubarão’. Eu queria voltar para cá e fazer alguma coisa que mais pessoas pudessem usufruir. Fiz mais uma viagem aos Estados Unidos, organizada pela American Cancer Society, e conheci vários centros para aprender a captar recursos, estruturar e montar organizações que davam suporte ao tratamento contra o câncer. A partir disso, consegui mobilizar pessoas para participar do projeto do Graacc em 1991.
ESQUINAS Sobre a precariedade no tratamento de doenças no Brasil que o senhor menciona, temos dados que afirmam que o Sistema Único de Saúde (SUS) encaminha muitas crianças para o Graacc, já que a questão da saúde pública no País é complicada. Você acredita que esse número tem diminuído?
O Graacc sempre teve praticamente todos seus pacientes encaminhados pelo SUS. Apenas 10% das crianças se tratam aqui por meio de convênios médicos. Formamos sete oncologistas pediatras por ano aqui no GRAACC, além de outros serviços pelo Brasil afora. Mas o que acontece de diferente aqui é que a organização se especializou nas partes mais complexas da oncologia pediátrica, como tumor cerebral, tumores ósseos, transplante de medula, tumores dentro do olho. É muito difícil achar outras instituições que tratem esses tipos de câncer, que são de alto risco.
ESQUINAS E como é o processo para uma criança se tratar no Graacc?
É muito fácil. Não temos deixado de atender ninguém. O hospital tem um sistema de casos novos e de triagem. Por exemplo, as unidades de saúde da Prefeitura e do Estado atendem as crianças com suspeita de câncer e mandam para o Graacc para investigação, que é o processo da triagem. Se o paciente não tiver câncer, retorna às unidades de saúde; em caso positivo, fica aqui. Para você ter uma ideia, ano passado, foram 700 casos que vieram para a triagem do Graacc e, desses, 400 diagnosticados com câncer. Basta ser encaminhado pelas unidades de saúde e de pronto atendimento do Governo Estadual e da Prefeitura.
ESQUINAS Quais medidas são tomadas pelo Graacc diante da crianças que são imunodeprimidas?
Quando você tem um câncer e vai se tratar com quimioterapia, essas crianças diminuem muito a produção de leucócitos, que são células brancas do sangue, e de linfócitos, que são células que defendem a imunidade da criança. Principalmente contra infecções. Essa é uma das nossas especialidades. Foi desenvolvida – e eu fui uma das pessoas pioneiras nisso – a parte de antibióticos, terapia e tratamento de fungos e vírus: quando cai o nível de leucócitos da criança e ela tem febre, precisa ter a chance de receber o tratamento antibiótico para proteger e não falecer devido a infecções. Quanto mais intenso for o tratamento do câncer, maiores os resultados. Mas também, maior a neutropenia [contagem anormalmente baixa de um tipo de glóbulos brancos, também chamados de neutrófilos], maior é o efeito da queda da imunidade.
ESQUINAS Como funciona o voluntariado do grupo?
Hoje, a gente tem mais de 500 voluntários [em 2017, foram 597] aqui no Graacc, que trabalham quatro horas por semana cada pessoa. O grupo cresceu, mas temos voluntários que participaram desde a fundação, como a Lea [Mingione] e o Jacinto [Guidolin]. O trabalho voluntário sempre fez parte do tripé: empresariado, voluntariado e universidade. A atuação pode ser em várias áreas do hospital, desde voluntário da brinquedoteca até da costura, do “posso ajudar?”, do banco de sangue. Normalmente, a partir dos 21 anos, a pessoa já pode se candidatar ao voluntariado. Às vezes, o problema está em um horário que a pessoa pode dar. Quando se compromete, a gente exige um pouco, vai se entrar numa escala e se leva bastante a sério o voluntariado. Aqui não é um trabalho de uma pessoa só, é de todo um conjunto de pessoas, uma sociedade.
ESQUINAS Como vocês se sustentam? De onde vem o dinheiro para manter o projeto?
Além dos eventos de arrecadação – o mais famoso é o McDia Feliz, da rede de fast food McDonald’s –, a gente tem que buscar na filantropia para completar o orçamento perto de 120 milhões de reais. Esse modelo mostrou que o Brasil aceita muito bem, é capaz de ajudar projetos claros, transparentes, que são capazes de mostrar o que estão fazendo. Então a gente vê uma sociedade brasileira solidária, que está buscando apoiar os projetos sérios e honestos. Na hora que elas doam, na hora em que ajudam, estão fazendo uma transformação na sociedade para um mundo melhor. Não é mais como antigamente, que você dava uma notinha ou uma moeda, porque você era “bonzinho” e os outros, “ferradinhos”. Então vamos ajudar. Eu acho que hoje o que interessa muito é você ajudar a causa, a cultura da doação, a transformar o mundo.