A riqueza cultural dos imigrantes bolivianos para além da conhecida tecelagem e costura
A Rua Coimbra, na região do Brás, em São Paulo, agita-se em cores e sons. Azul, vermelho, rosa, verde, prateado e dourado. Um tambor ressoa ao fundo, vibrante e reverberando pelo ambiente. As pessoas nas calçadas dançam e gravam com seus celulares a apresentação de dança de homens e mulheres com chapéus coloridos e botas brilhantes com guizos pendurados. Quem está ali comemora, naquele 12 de outubro de 2018, o sucesso de um povo.
Não é uma tarde normal. Desde 2001, o lugar é conhecido por sediar todos os domingos uma das mais tradicionais feiras bolivianas da capital paulista. É ponto de encontro de imigrantes e descendentes bolivianos. Naquele dia atípico, o evento celebra não apenas a festa dos pequenos — presenteados com doces e músicas infantis na língua castelhana —, mas também as conquistas e a união de uma população que não para de crescer.
De acordo com dados do último Relatório Anual do Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra), a Bolívia foi o segundo país de onde mais estrangeiros partiram rumo ao Brasil. Entre 2010 e 2016 foram quase 61.000 pessoas, atrás apenas do Haiti, terra natal de 437.134 migrantes — fugidos, em grande parte, da situação de calamidade pública que acomete o país desde o terremoto de 2010. A pesquisa foi divulgada pelo Ministério do Trabalho brasileiro. Ao deixarem a Bolívia, algumas dezenas dessas pessoas vêm integrar a comunidade paulistana íntima do Brás.
A festa tenta mostrar a visão forte deles sobre eles mesmos: guerreiros e vitoriosos. Isso porque, como diz o jornalista do site Bolívia Cultural Antônio Andrade, “o imigrante chega aqui com uma identidade clara, ele veio para vencer. O problema é que existe um estereótipo que retrata o boliviano muito mais como uma vítima do que propriamente um vencedor”. Nessa perspectiva, prevalece erroneamente um lado subserviente do boliviano, geralmente empregado na indústria têxtil e alvo constante de etnocentrismo.
O próprio relatório do Ministério do Trabalho citado anteriormente aponta que, em 2016, foram registrados 5.975 casos de bolivianos inseridos no mercado de trabalho formal. No ano seguinte, passaram a ocupar a terceira posição no ranking de mediana salarial de imigrantes no momento de admissão (1.391 reais).
“A gente é órfão de tudo”
Também aos domingos, acontece outra feira boliviana de destaque na cidade de São Paulo: a Kantuta. Assim como na Rua Coimbra, a Kantuta é um antro de congregação para diversos bolivianos e seus descendentes. Eles compram e vendem produtos da terra natal, revisitam a gastronomia andina – há pratos típicos como Pique Macho, empanadas e humitas –, dançam Saya ou apenas “paslam” espanhol para botar o papo em dia.
Andando a esmo pela efervescência cultural, é fácil se deparar com Rocío Quispe, boliviana e membra do Projeto Si, Yo Puedo. Ela apresenta o coletivo e se dispõe para tirar dúvidas de todos que desejam se legalizar no país, aprender a língua portuguesa, fazer cursos gratuitos ou voltar a estudar. Quispe, bolsista do programa ProUni, formou-se em Ciências Contábeis e trabalha no departamento de Recursos Humanos do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Ela explica que a burocracia para entrar em uma escola é muito grande. “É muita informação. Por isso que a gente acaba ficando no ramo da costura, porque não recebemos essas informações”, reclama.
Quispe também chama a atenção para a importância de se estudar com material na primeira língua. Essa foi uma iniciativa do IFSP que entrou em vigor recentemente. A instituição produziu e distribuiu apostilas inteiras em espanhol, inglês ou francês à comunidade imigrante. A ação foi crucial para o aumento de bolivianos em trabalhos formais. “Digamos que a gente não tem essa oportunidade, porque a gente chega aqui sem saber falar o idioma, sem ter referências. A gente é órfão de tudo, então fica muito difícil”.
“Você pode fazer algumas coisas, e elas podem dar certo”
Outro visitante assíduo das feiras bolivianas é Luis Delgadillo, que se mudou para o Brasil há 25 anos. As condições de vida inferiores na Bolívia foram o estopim para sair do país. “É o mesmo que um brasileiro ir para os Estados Unidos”, argumenta.
De outro lado dessa história, diferente de Rocío Quispe, Delgadillo já viajou para cá com um diploma em mãos, em busca de outro. Ele é formado em Medicina pela Universidad Mayor de San Simón, em Cochabamba, e veio para São Paulo fazer residência em Pediatria na Santa Casa. Hoje atua como coordenador da UTI neonatal do Complexo Hospitalar de São Bernardo do Campo e do Hospital Estadual Mário Covas, em Santo André. Ele ainda é professor e leciona no Centro Universitário São Camilo, na Uninove e na Faculdade de Medicina do ABC.
A prosperidade acadêmica e profissional de Delgadillo motivou parte de sua família – três dos seis irmãos – a também tentar uma vida fora da Bolívia. Indagado sobre as dificuldades de morar no Brasil, ele rapidamente associou a pergunta ao possível preconceito que teria sofrido e declara que nunca reparou em nenhum tipo de discriminação. Diz que os únicos contratempos foram os de um estudante comum: pagar as contas no fim do mês e botar comida na mesa.
Dono de uma visão otimista, o médico comenta que não se pode uniformizar os bolivianos, muito menos enxergá-los todos como “costureiros”. Ele lembra que muitos outros trabalhadores “migram da Bolívia e não se submetem a condições subumanas para continuar trabalhando”. Na Kantuta, tem amigos, dança com os filhos deles e é exemplo de que essa migração pode dar certo. “Eles me têm como exemplo. Exemplo de que você pode fazer algumas coisas e elas podem dar certo”.
“Uma realidade mais dura e difícil”
Bolivianos também ocupam cargos de liderança em multinacionais. Esse é o caso de Nicolas Bruckner, diretor de distribuição de uma filial regional da cervejaria holandesa Heineken. Quando chegou ao Brasil há cinco anos, diz ter feito uma transição tranquila e não precisou fazer muita coisa porque “a empresa organizou tudo”. Desde então, acumula conquistas no ramo profissional, como a transformação da área em que trabalha na cervejaria e a liderança da frente de Logística e Distribuição da marca.
Sem meias palavras, ele define os imigrantes como “qualquer pessoa que procura suas ambições, alternativas e desejos”. Assim como Rocío e Luis, lamenta a maneira que a mídia costuma a retratar seu povo. “Tenho a impressão que existe certa discriminação”.
O empresário admite que possui um contato limitado com a comunidade boliviana da cidade de São Paulo. Bruckner está ciente da situação de muitos de seus compatriotas aqui no Brasil. “Os bolivianos têm uma realidade mais dura e difícil devido ao tipo de trabalho que exercem e suas respectivas dificuldades econômicas”, comenta sem deixar de enfatizar a força desses imigrantes valorizada nos festivais como a Kantuta ou na Rua Coimbra.