Em uma das noites mais frias do ano, o estádio do time argentino River Plate foi casa para moradores em situação de rua como parte de uma ação social
O estádio mais importante da Argentina recebeu uma ação organizada pela instituição Red Solidaria. Responsável pela ação Frío Cero (“Frio Zero”, em português), ela existe há 24 anos e possui uma parceria com o time River Plate há duas décadas. No dia em que ESQUINAS visitou o palco do clube do bairro de Belgrano, o estádio Monumental de Nuñez, os termômetros registravam algo próximo aos 3ºC, sendo que a sensação térmica estava abaixo de zero. A noite do dia 5 de julho ficou conhecida como a mais fria do ano na capital argentina.
“Nós temos que fazer algo pela comunidade”, observa Martín Giovio, coordenador da ação. “Buenos Aires, por ser uma cidade grande, tem a obrigação de ajudar os que mais precisam”. Defendendo as ações, o voluntário afirma que estas já reduziram as mortes de moradores em situação de rua nos últimos nove anos. Em 2009, 67 pessoas morreram de hipotermia em Buenos Aires. No ano passado, faleceram apenas 11. No entanto, Giovio fala que irá parar até ninguém mais morrer de frio na capital – neste ano, segundo a Red Solidaria, cinco pessoas já morreram pelo frio das ruas buenairenses.
Ao adentrar o estádio do segundo clube com mais torcedores e o mais valioso da Argentina, lá estão as pessoas sentadas com sua trouxa de roupas e segurando comida – um macarrão e para a sobremesa uma espécie de marmelada – e algo para beber. Pilhas de roupas para o frio, desde casacos até toucas, dos mais variados tamanhos e cores, espalham-se pelas arquibancadas. A estimativa de Martín Giovio arredonda para aproximadamente 20 toneladas de vestimentas doadas. Pessoas de idades, cores e gêneros diferentes se esbarram no pequeno corredor usado na ocasião como passagem dos moradores e voluntários. Aqueles que não pegaram suas doações vestiam roupas finas demais para a temperatura próxima dos valores negativos.
Logo na entrada, uma mãe com seus seis filhos come um prato de macarrão. A moça, que prefere não ser identificada, descobriu a ação do River e da Red Solidaria pela televisão. Para ela, essa ação ajuda muito os que vivem na mesma situação que a dela.
Dentro do Monumental, há mais do que comida, roupas e abrigo. Médicos estavam à disposição para examinar a respiração e os batimentos cardíacos dos presentes. Duas jovens também cortavam os cabelos daqueles que estavam lá, tudo voluntariamente.
Milton Velardes está há cerca de um ano vivendo sozinho na rua. Sem família, o ex-caminhoneiro chegou a essa situação após ser demitido do seu antigo emprego. Depois disso, teve outros trabalhos, mas nenhum deu continuidade e chance de conseguir uma casa para dormir. Hoje, seu maior desejo é sair da rua e voltar a trabalhar, mas diz não receber ajuda de qualquer setor da política argentina. Velardes argumenta que governo não tem a capacidade de prover as necessidades que ele – e outros como ele – possui. A insuficiência dos albergues para a toda a população que vive nas ruas da cidade portenha é uma das causas dessa negligência.
Quando Velardes foi ao sindicato dos caminhoneiros local pedir auxílio, recebeu a resposta de ir atrás de emprego, porque não tinham como ajudá-lo. Sem perspectiva para o futuro, agora ele apenas busca sair da atual situação para então engatar uma melhora financeira. Para abrigar-se do frio, entra nos ônibus da cidade e faz todo o trajeto de ida e volta até o motorista ou alguém expulsá-lo.
Um dos voluntários da ação, Pablo Celso entrou na Red Solidaria há oito anos. Ele estava no Monumental naquela noite fria. Crítico de quem fala que os moradores estão nas ruas por vontade própria, foi enfático ao dizer que “ninguém escolhe viver nas ruas”. Pensa que é até irônico ver que algumas pessoas acreditam que quem vive na rua está lá por preguiça de ir trabalhar ou por ficar esperando alguma ajuda governamental.
Assim como Milton Velardes, Néstor Zapata mora há mais ou menos um anos nas ruas de Buenos Aires. Mais idoso, vestia uma espécie de uniforme militar que remetia ao que era usado pelos soldados da Guerra das Malvinas, conflito armado no Atlântico Sul entre Argentina e Reino Unido em 1982. Emocionado, Zapata conta sua história e explica que nunca se imaginou naquela situação: menos de quatro anos atrás vivia com a família em uma casa, tinha um emprego e também um carro. Após perder o trabalho, como um dominó, perdeu os filhos – saíram de casa para morar com a mãe –, a casa e o automóvel até chegar ao ponto de precisar dormir no chão e bancos das estações de trem.
Hoje, Zapata vive nas ruas da cidade à sombra do medo de outro na mesma situação ou da polícia local pegar suas coisas. Algumas vezes na semana consegue tomar banho e passar a noite na casa de amigos ou familiares. No entanto, diz não ficar muito tempo para não atrapalhar e criar conflitos com a família destes. Ele ainda afirma que nunca precisou de bebida ou droga para dormir no frio, mas que muitos de seus amigos chegam a cheirar gasolina para se aquecerem. Conta que um conhecido morreu após exalar o combustível.
A ação da Red Solidaria e do River Plate incentivou outros clubes argentinos, como o Vélez Sarsfield, do bairro de Liniers, e estabelecimentos portenhos a receberem moradores em situação de rua. A relevância do Frío Cero alcançou também o outro lado da fronteira: o Internacional, de Porto Alegre, em colaboração com o rival Grêmio, abriu o Estádio Beira-Rio para quem mora nas ruas da capital gaúcha. Seguindo a lógica do coordenador da ação, Martín Giovio, times de futebol agora percebem que podem se levantar e fazer algo por essa população cada vez mais presente nos cenários urbanos, seja no Brasil ou Argentina, seja em outros países.