Uma forma diferente de se ver - Revista Esquinas

Uma forma diferente de se ver

Por Beatriz Zolin, Laura Justino e Tayna Fiori : agosto 6, 2019

Conheça a trajetória de quatro deficientes visuais e sua relação com a autoestima

Com brincos de argola, corte de cabelo moderno e apaixonada por moda, Dorinha acompanha Mônica e sua turma em diversas aventuras. Sempre ao lado de sua bengala e usando óculos escuros, ela é uma das primeiras personagens com deficiência feitas por Mauricio de Sousa e a única que troca de roupas nos quadrinhos. A personagem é uma homenagem à educadora Dorina de Gouvêa Nowill. Cega desde os 17 anos foi responsável por popularizar no Brasil os livros em braille – sistema de escrita tátil utilizado por pessoas cegas – e voltou-se para a luta pelos direitos de deficientes visuais. Em 1946, a educadora fundou uma instituição que hoje leva seu nome para incluir pessoas como ela na sociedade. Além de fornecer atendimento psicológico, fisioterapia e oportunidades de emprego, um dos pontos mais trabalhados ali é a autoestima.

Construir uma boa relação consigo mesmo é uma batalha para qualquer pessoa, especialmente para os deficientes visuais. Segundo Clarissa Freitas, psicóloga da Fundação Dorina Nowill, estes são um grupo propenso a ter autoestima baixa. “O conceito para eles do que é ser belo é muito influenciado por o que os outros falam. Através do que dizem, constroem na cabeça um padrão de beleza. Por isso, os deficientes visuais podem acabar enraizando o pensamento dos outros e da sociedade”, explica.

É muitas vezes a partir do tato, cheiro e som que a autoestima de deficientes visuais é formada. “Se colocar um bebê no colo da mãe em frente a um espelho, ele irá reconhecer que é uma pessoa diferente da mãe e a partir disso vai criar o conceito de si. No caso do cego, como ele não tem essa visão, é através dos outros sentidos que ele irá se perceber”, diz Freitas.

Apesar de não terem a ajuda de um espelho, os deficientes visuais não deixam a vaidade de lado. Maria Regina Marques, deficiente visual e assistente social da Fundação explica como o processo de busca da autoestima é importante. “Na terapia ocupacional, por exemplo, uma das atividades mais procuradas é a da automaquiagem. Mulheres que deixaram de se maquiar pela perda da visão passam a descobrir novas maneiras de melhorar seu amor-próprio”.

Entretanto, cada indivíduo lida com as adversidades da deficiência a sua maneira, e a autoestima possui um significado particular para cada um. ESQUINAS colheu relatos de alguns deficientes visuais que você confere abaixo:

Claudemir Walci, 35 anos

“Quando conheço alguém, me sinto atraído pela voz, pelo cheiro, pela interação, não pela beleza”
Reprodução

Possuo glaucoma congênito e deslocamento de retina. Considero a autoestima um estado de espírito em que devemos deixar a porta aberta apenas para as boas energias, trabalhando todos os dias para nos conscientizar de que somos importantes e termos uma missão na Terra. Tento sempre levar a vida com leveza. Quanto a não enxergar, procuro não pensar nisso. É quase igual quando se quer aprender um novo idioma: se você ler a frase e tentar traduzir para o português, nunca vai ter fluência na nova língua. Portanto, não tento seguir os padrões da sociedade, mas o meu próprio: cuidar da minha saúde, vestir roupas confortáveis, praticar esportes, estar sempre cheiroso, enfim. Não sei exatamente o que é ser bonito, não tenho noção desse conceito. Quando me perguntam se eu me considero bonito, não sei o que dizer. Quando conheço alguém, me sinto atraído pela voz, pelo cheiro, pela interação, não pela beleza. O que importa é me sentir bem comigo mesmo.

Gustavo Torniero, 23 anos

“Na escola e na faculdade, eu me sentia rejeitado, o que foi bem complicado, pois não sabia se era discriminação ou produto da minha mente”
Reprodução

Sou jornalista e acabei me tornando conhecido nas redes sociais depois que minha então namorada publicou um thread no Twitter sobre como é namorar uma pessoa com deficiência visual. Possuo glaucoma e catarata congênita. Para mim, a autoestima é lidar bem com o seu modo de ser. É um processo que deve ser trabalhado a longo prazo, principalmente quando você tem uma deficiência. Na escola e na faculdade, eu me sentia rejeitado, o que foi bem complicado, pois não sabia se era discriminação ou produto da minha mente. Fazer acompanhamento psicológico me ajudou muito no processo de aceitação. Hoje me considero bonito, pois penso que beleza é uma junção de fatores de construção social, autoimagem e, no meu caso, opiniões de terceiros. Quando comecei a namorar, por exemplo, minha autoconfiança melhorou. Ainda assim, as pressões estéticas me afetam por me importar com a opinião dos outros, mas encontrei um equilíbrio entre a minha opinião e a dos outros.

Gabriela Reis, 20 anos

“Às vezes queria poder enxergar para não passar por certas dificuldades ou para não depender das pessoas”
Reprodução

Além de ter nascido com glaucoma congênito e ter feito três transplantes de córnea, ainda tive catarata e má formação nos olhos. Não tenho uma autoestima alta, porque meu emocional é instável: sou tímida e acabo não sabendo me expressar bem. Às vezes queria poder enxergar para não passar por certas dificuldades ou para não depender das pessoas. Mesmo assim, me considero bonita, pois minha vaidade é mais pela depilação, por estar cheirosa ou por fazer algo diferente no cabelo, como uma trança. Acredito que a pressão estética seja uma coisa muito forte, pois as pessoas podem até ser consideradas “perfeitas”, mas vão acabar achando algum defeito em si mesmas. Com as redes sociais, pude melhorar essa questão da autoestima. Pelos grupos do Facebook, tive acesso a pessoas que passam por experiências semelhantes às minhas e me dão dicas. A internet se tornou uma ferramenta cada vez mais acessível e posso dizer que mudou minha vida.

Neuza de Souza, 63 anos

“Para mim, a autoestima se resume ao que vamos levar no caixão, a toda nossa bagagem espiritual”
Reprodução

Nasci com baixa visão, só enxergava metade do mundo. Até os meus 20 anos, fazia tratamento com uso de remédios e colírios. Depois dessa idade, meus pais decidiram que só os óculos curariam o cansaço da minha visão. Aos 40 anos, chegou o glaucoma, fiquei totalmente cega. Minha família não me apoiava, fui abandonada por eles e acabei vindo para a Liga dos Cegos, que me acolheu muito bem. Eu sentia muitas dores na vista, nunca consegui estudar por conta disso, muito menos o braille, pela falta de informação. Para mim, a autoestima se resume ao que vamos levar no caixão, a toda nossa bagagem espiritual. Ninguém valoriza algo que um cego fez. Não me sinto bonita, mas não ligo para isso desde pequena. Hoje em dia, só me visto e pergunto se está bom. Penso que cada pessoa é diferente, não devemos nos encaixar em um padrão, porque isso não existe. Me conformei com a minha situação e me valorizo da minha maneira.