Ministério Público classifica decisão para a Cracolândia como “tragédia humanitária”. Justiça determina reabertura do espaço – que, até o momento, segue fechado
Na manhã da última quarta-feira (08), a Prefeitura de São Paulo contrariou uma ação civil da Defensoria Pública e desativou o Atende II (Atendimento Diário Emergencial) – único equipamento público que fornecia abrigo, higiene e alimentação para aquela área.
Com aglomeração e vários fotógrafos e jornalistas presentes no local, a transferência foi feita por meio de ônibus e vans. Pouco mais de 200 pessoas cadastradas pela SMADS (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) foram para o SIAT (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica), no Glicério, bairro localizado a dois quilômetros do Atende 2. Esses equipamentos fazem parte do Programa Redenção, criado em 2017, quando João Doria ainda era prefeito de São Paulo.
A situação causou medo e preocupação – para quem mora ali, a desativação do último serviço público significa falta de cuidados básicos e a possibilidade de aumento da violência policial, fator comum no cotidiano de muitos na Cracolândia. Segundo o Ministério Público, só durante as manhãs, circulam de 500 a 700 pessoas na região – , esse número dobra no período da noite. Além disso, é o único serviço que garantia o mais básico dos direitos humanos: alimentação, banho, abrigo e prestação de socorro.
ESQUINAS ouviu frequentadores do território e ativistas sociais. A sensação é de indignação. Rafael, 30 anos, morador da região, expressou sua indignação: “A realidade é que a gente é espancado, é spray de pimenta na cara, jogam água em nós quando tá fazendo a limpeza, gente comendo comida do lixo no chão…imagina sem a tenda*? o governo não está nem aí pra gente, a realidade é outra, isso aí é descaso e abandono”.
Em nota, a assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo falou como vai funcionar o SIAT II: “O local tem 200 vagas, sendo 100 para atendimento diurno e 100 para pernoite, destinadas a homens, mulheres e transexuais em situação de rua e dependência química”.
O Ministério Público classificou como “tragédia humanitária” a ação da Prefeitura na Cracolândia. A grande apreensão de ONGs, coletivos e movimentos sociais que atuam no território é principalmente com a pandemia do novo coronavírus. “Sem o serviço, como os moradores e usuários vão lavar as mãos? O risco agora passa a ser maior”, afirma Carmen Lopes, assistente social e idealizadora do coletivo “Tem Sentimento”.
“A decisão da prefeitura [na Cracolândia] é totalmente descabida. Apesar das falhas, era a única opção de higiene das pessoas em situação de vulnerabilidade”, completa Flavio Falcone, médico psiquiatra e artista que se apresenta no território. “Como era de se esperar, hoje a região já foi palco de uma ação violenta. O único poder público por lá é a polícia”, denuncia.
Mesmo com a vulnerabilidade em que as pessoas da região se encontram, a Prefeitura manteve a decisão. Raphael Escobar, artista plástico e um dos idealizadores do movimento social “A Craco Resiste”, ressaltou que sempre acontecem desmontes nos serviços da área: “Essa é a história da Cracolândia. O que se vê ali é um ataque direto a essas pessoas, numa tentativa constante de apagar essa subjetividade”.
Durante a transferência, o descaso ficou ainda mais evidente quando relataram a existência de um corpo nas imediações do equipamento. O homem não foi identificado, e a causa da morte teria sido tuberculose.
“Em meio a uma pandemia, o que se apresenta é mais uma tentativa de genocídio naquele território, no momento mais importante que todo mundo precisa de ajuda e cuidado, o Estado vem na sua melhor faceta colonial tentar dizimar o povo de um jeito simples: tirando água e comida, o único serviço da Prefeitura no território”, disse Escobar, enfatizando a falta de cuidado com essa população nesse momento tão crítico.
Até a publicação desta reportagem, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a reabertura do espaço, mediante a decisão da juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública. “Caso já tenha se iniciado o fechamento, as atividades deverão ser, por ora, reestabelecidas”, escreveu na liminar.
No entanto, elas ainda não foram retomadas no Atende 2, a Prefeitura indicou que vai recorrer da decisão. “O novo equipamento, o SIAT II – Glicério, atende todos os requisitos de Direitos Humanos e oferece melhor atendimento no acolhimento e no tratamento da saúde de usuários de álcool e drogas em situação de vulnerabilidade. O novo equipamento é para salvar vidas”, informou a assessoria.
*Tenda: Como o Atende 2 é conhecido popularmente.