Professor João Peschanski integra grupo voluntário que confecciona equipamentos de proteção e recebeu o reforço de Marcelo Bamonte, do 4º ano de jornalismo viseiras
– É estranho de pensar isso, né? viseiras
– Pensar o que, professor?
– De fato podemos estar salvando vidas.
Ao despontar do sábado [9 de maio], estávamos no carro. “Não vou te dar a mão, está fora de moda”, disse ele. Realmente, já é um gesto obsoleto. Estou acompanhado do meu professor de Ciência Política da Cásper, João Alexandre Peschanski. Suas mãos ao volante nos levavam ao Instituto de Matemática e Estatística da USP. Nosso desígnio: confeccionar, com a ajuda de impressoras 3D, viseiras protetivas para serem doadas a profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus.
Me pus a observar que a reverberação da mudez, que antes se manifestava com uma sutileza ácida, agora já havia, de fato, evaporado. A cidade já estava com uma circulação maior do que a recomendada pelas autoridades. Bailando ao som de buzinas e rodas volteando o asfalto, o isolamento batia naquele dia a ínfima marca de 46% de adesão. “Na Zona Leste a situação está difícil. Muitos profissionais de saúde infectados. O foco é tentar ajudar a Zona Norte agora”, ressaltou Peschanski.
O projeto, realizado de forma autônoma em uma parceria de professores e alunos voluntários, busca confeccionar o maior número possível de instrumentos de proteção para abastecer os hospitais que carecem desses produtos. Conta com a ajuda de doações de materiais de empresas e instituições. Todos os voluntários realizam a ação no mesmo laboratório, não o frequentando em mais de duas pessoas e tendo seus turnos segmentados entre os dias da semana. Eu era estreante, mas Peschanski já havia feito o itinerário de sua residência para a Cidade Universitária copiosamente. Na entrega prévia, foram cedidas viseiras e máscaras para o Hospital Euryclides de Jesus Zerbini, na Bela Vista. O número total de protetores faciais doados já passava de 450. “Geralmente, com 400 a 500 unidades, abastecemos um hospital de médio a grande porte. Vamos ver quantas fazemos hoje. Gostaria de ter 100 montadas”.
O campus da Cidade Universitária, uma vez repleto de estudantes, agora estava ermo. Apesar da presença de algumas pessoas fazendo cooper – o que nos causou indignação – nos dirigimos ao prédio e adentramos a sala onde a operação seria feita. O método é simplório, mas deve ser feito de maneira eficiente para evitar desperdícios, visto que a quantidade de materiais ainda é escassa. Com três impressoras em funcionamento, a operação se dá através de um software francês, do grupo Visière Solidaire. Nele, o projeto de molde das bases das viseiras já se encontra pronto, assim como o dos clipes que são utilizados para fixar o acetato, material de proteção da viseira, de tamanho A4, na base em si. “O problema foi chegar ao tamanho ideal. Como cada impressão de base leva um pouco mais de uma hora, e a dos clipes, em média, 30 minutos, perdemos muito tempo tentando definir o modelo certo, mas agora acertamos, basta configurar e imprimir”.
Começamos. Enquanto já havíamos configurado as impressões e esperávamos sua finalização, nos atiramos a montar os materiais. Como os produtos impressos são feitos com linhas de costura e submetidos a temperaturas muito altas, eles acabam ficando duros e espessos, o que faz com que seus dedos necessitem da força para realizar o encaixe entre o acetato e a base. “As pontas dos meus já estão calejadas. Você acostuma”. De fato, a dor é suportável, mas a cada clipe encaixado, os dedos se desgastam mais. Talvez seja esse o paradoxo que esteja nos movendo a fazer isso: que doam nossos dedos para que não doam os corações das famílias que podem vir a perder um ente querido. “Tá apanhando pra viseira aí? Quero ver se vai demorar dez minutos em cada”, brincou o professor, me fazendo brotar um sorriso de canto em meio ao espasmo involuntário da ponta das mãos.
O trabalho se dava, então, muitas vezes em revezamentos: montar as viseiras, retirar as novas impressões, limpar as impressoras e configurar tudo novamente para uma próxima operação. Um fluxo simples, mas com certeza importante. Máscaras no rosto, uma sala quente com o funcionamento de impressoras e dedos calejados. Talvez fosse essa a imagem que poderia, ao menos, salvar mais uma vida. O aprendizado também se dava em meio a risadas e conversas informais sobre política. Os devaneios atingiram o velho Marx, flutuaram sob campus universitários e conversas sobre pesquisas científicas e até aterrisaram nas boas lembranças – e sofrimentos – com o nosso clube querido do coração, o Corinthians. As tagarelices fizeram de tudo, menos cair no campo da navegação marítima, visto que o chefe do executivo já o estava ocupando. Nós e as viseiras. O presidente e o jet-ski.
Após uma breve pausa para o almoço, as produções continuaram até o fim da tarde. A fita elástica – usada para fixar a viseira ao redor da cabeça – estava em falta, mas a linha de produção seguia firme com o que podíamos fazer. Foi necessário, infelizmente, interromper a prática de montagem por falta de clipes, já que havíamos utilizado todas as reservas e o acetato também já se aproximava do fim. Restavam ainda algumas bases que, com erros de impressão, foram restauradas cuidadosamente por nossos dedos já brevemente lesionados, com a ajuda de uma fita elástica.
No fim das contas, nos preparávamos para deixar o laboratório com 170 viseiras montadas, 60 novos clipes impressos e 30 bases para viseiras confeccionadas. Antes de sair, ainda nos lamentamos por não estarmos com os elásticos em mãos, o que já possibilitaria que doações fossem realizadas. “Essas vão para o Tucuruvi. Vou deixar mais alguns clipes e bases sendo impressos e o pessoal vai tocando durante a semana também. Pelo menos batemos a meta”.
Na volta para casa, ainda discutíamos alguns detalhes da produção do dia e já nos ajeitávamos para as próximas datas de encontro. “O foco principal é que as pessoas vejam isso e se mobilizem. Em tempos assim, pensamos que se trata de um ambiente muito superior a nós, mas não. Toda ação tem sua importância”. Refazendo a trajetória do dia, senti como se essa fala, nem que por um instante, tivesse curado toda a dor e cansaço sentidos ao longo do processo. As feridas causadas por um dia de solidariedade não podem ser mais profundas do que as suscitadas pela falta de planejamento político das autoridades vigentes. Isso, jamais.
Desço do veículo e despeço-me. O Brasil acabara de chegar ao número de dez mil mortos pela covid-19. O presidente gargalhava da imprensa e minimizava o fato. A fadiga, como uma brisa temporária, se desprende do meu corpo. Senti saudades das impressoras.