A proteção de garantias fundamentais é necessária para diminuir “o impacto da pandemia sobre a vida das pessoas”, segundo professora da IUPERJ
Desde o início do mês de março, quando foi classificada como “pandemia” pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a covid-19 já configurava, em âmbito global, uma crise econômica, social, e humana sem precedentes. Segundo António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), ela “está rapidamente se tornando uma crise dos direitos humanos.” Publicado no final de abril, um relatório da ONU expressa a importância da proteção de garantias inalienáveis, fundamentais no combate e prevenção de um vírus que “não discrimina”, mas tem seus efeitos amplificados em certas comunidades devido a suscetibilidades sociais e estruturais.
No Brasil, de acordo com outra nota emitida por relatores da Organização, políticas econômicas e sociais austeras, como o “teto de gastos”, contribuíram significativamente para a intensificação dos impactos da pandemia e devem ser abandonadas. Segundo o comunicado, a desigualdade e a miséria já existentes no País foram agravadas pelo novo coronavírus, atingindo, principalmente, mulheres e crianças vivendo em situação de pobreza, afrodescendentes, populações rurais, e residentes de assentamentos informais.
Essas alegações, contudo, foram questionadas pela embaixadora brasileira na ONU, Maria Nazareth Farani Azevêdo, em uma reunião virtual do Conselho dos Direitos Humanos. A diplomata argumentou que o documento não condiz com a situação atual do Brasil, pois, segundo ela, as medidas econômicas adotadas não influenciam a capacidade do governo de amparar grupos vulneráveis. “Estamos sendo confrontados com a difícil tarefa de proteger vidas e garantir sustento para a nossa população. Não é um tempo para confrontar, mas para confortar”, afirmou Azevêdo.
Reiterando as publicações das Nações Unidas, a professora de Sociologia Política da IUPERJ, Camila de Mario, diz que a desigualdade acentua os efeitos da covid-19 em comunidades vulneráveis. “Se nós fôssemos uma sociedade igualitária, equilibrada, já teria um impacto importante. Por conta das diferenças sociais, o impacto é ainda maior, explica. “Em uma situação como essa, precisamos de um sistema de saúde que atenda a todos da maneira mais igual possível. Por mais que o Sistema Único de Saúde seja uma de nossas mais importantes conquistas, ele tem uma série de precariedades, ainda mais em localidades vulnerabilizadas, onde o atendimento é mais fragilizado”, completa a professora.
De acordo com ela, o distanciamento social e a possibilidade de “continuar pagando suas contas, e manter, minimamente, sua vida funcionando”, são luxos nesse momento. “A maioria da população acaba sendo mais exposta ao risco e não pode se dar o direito de ficar em casa e proteger sua saúde e a de sua família”.
A proteção das garantias sociais e humanas, segundo de Mario, também está sendo ameaçada: “Existe uma inação por parte do governo federal. Tem uma série de medidas que foram anunciadas, decretos que são publicados, orientações normativas, que ficam no reino da agenda”, aponta. “As ações de saúde são o foco nesse momento — e devem ser. Mas existem outras ações que poderiam estar sendo implementadas, concomitantemente, e que diminuiriam o impacto da pandemia sobre a vida das pessoas. Em uma situação de exceção como essa você não consegue garantir a todos o acesso pleno de seus direitos, mas temos que garantir o mínimo: a dignidade, que as pessoas tenham o que comer, onde morar, e o cuidado de si mesmas e do próprio corpo.”
“Um prefeito ou outro, um governador ou outro, está fazendo campanhas mais sólidas e tentando conscientizar as pessoas. Mas temos que pensar até que ponto essas campanhas e informações chegam nas comunidades”, opina a professora. Por esse motivo, ela aponta a atuação de instituições e ONGs como essencial nesse momento.
“É aí que entra o papel e a relevância das ONGs e líderes comunitários. Eles falam diretamente com essa população, assumindo o papel de orientar, dar suporte, organizar a distribuição de cestas básicas, máscaras e álcool em gel. E o mais importante, tentam explicar às pessoas o que está acontecendo”, diz. Segundo ela, sem tais entidades, “a crise seria muito mais profunda.”
Uma dessas iniciativas trazidas pela própria comunidade é a ONG Por Nossa Conta. “A partir do momento em que você está na rua, escutando as pessoas, vendo as dificuldades que elas passam, fome, e frio, essa é a motivação [para ajudar]”, dizem assessores do projeto.
Fundada em 2020, a ONG iniciou suas atividades cozinhando para moradores do Largo do Arouche, entregando 200 marmitas mensais. O objetivo era crescer e fazer as entregas semanalmente. No entanto, a pandemia trouxe empecilhos: “Ficamos um tempo parados, entendendo o que iríamos fazer. Resolvemos nos movimentar, arrecadar dinheiro para conseguir comprar itens de higiene, limpeza e cestas básicas.”
A iniciativa cresceu rapidamente, com o auxílio das redes sociais. “Conseguimos muitos seguidores, o que ampliou as redes e as doações. Entramos em contato com comunidades e elas começaram a vir atrás de nós. Começamos a atuar principalmente em Brasilândia, que é o maior foco da covid-19.” Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, o bairro, localizado na Zona Norte, concentra o maior número bruto de óbitos, confirmados ou suspeitos, pela doença. “E não tinha absolutamente ninguém ajudando. Nenhuma ajuda governamental, de Prefeitura, nada. Então a gente se comprometeu a entregar 200 cestas básicas toda semana. A mesma coisa aconteceu com Paraisópolis. A gente equipou a cozinha das Mulheres de Paraisópolis, que estão cozinhando todos os dias para sua comunidade.”
Unidos ao projeto Cozinha de Combate e a outros três restaurantes, passaram a distribuir até 600 marmitas diárias. Elas são entregues no centro de distribuição na Barra Funda, onde também são recebidas doações. Na conjuntura atual, tudo é feito com precaução: “Todos sempre de máscara, higienização o tempo inteiro. A gente passa álcool, dá máscara para quem não tem e as pessoas retiram os alimentos. Não tem contato físico, apenas visual.”
Os resultados das doações e mensagens de retorno mostram a disposição de muitos voluntários e apoiadores. “Somos uma instituição que veio do nada. Então, o fato de termos arrecadado 200 mil reais prova que as pessoas estão dispostas a ajudar”, dizem os organizadores do projeto que, segundo de Mario, “ocupa um vazio deixado pelo Estado”.