Especialistas explicam como a falta de conhecimento e o preconceito contribuem para a marginalização de indivíduos com esse transtorno
Doenças como depressão e ansiedade subiram no palanque do conhecimento e do debate público e têm sido levadas mais a sério — apesar de ainda estarem cercadas por uma grande parcela de ignorância. Enquanto isso, outros distúrbios mentais tão graves e complexos quanto aqueles, não têm visibilidade, a não ser nas telas de cinema. Esse é o caso do Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI).
Como se desenvolve
O Transtorno Dissociativo de Identidade baseia-se na desregulagem emocional do indivíduo. Na maioria dos casos, é causado por traumas vividos durante a infância. De acordo com estudos, abusos sexuais, psicológicos e físicos são os mais responsáveis pelo desenvolvimento do transtorno. A pessoa passa a criar outra(s) personalidade(s) e a “dissociar-se” em até mais de 20 personalidades a fim de se proteger de seus sofrimentos passados.
Caracterizado como raro e pouco recorrente, o Transtorno Dissociativo de Identidade atinge de 3 a 4% dos pacientes em hospitais psiquiátricos, sendo desenvolvido por uma média de 150 brasileiros por ano, segundo uma pesquisa feita pelo site do “Banco da Saúde”.
A falta de conhecimento por parte da sociedade, somada à baixa recorrência no País, acarretam dois fenômenos que caminham lado a lado: a intolerância e a marginalização.
O preconceito
“O preconceito impede que muitos peçam ajuda. Às vezes o próprio paciente ou alguém próximo tem”, diz o psicólogo e psicanalista Renato Gomes da Silva.
O desprezo para com os deficientes intelectuais é visível na dificuldade vivida por eles de inserção na sociedade. De acordo com a neuropsicóloga Ailla Stefano, a educação em relação à inclusão de pessoas com transtornos psiquiátricos deve começar nas escolas, junto à primeira infância. “A sociedade precisa parar de fingir que inclui os doentes psiquiátricos. A responsabilidade não é somente das famílias e das escolas, mas sim de todos nós”, afirma.
A especialista ainda diz que “o preconceito está relacionado à falta de informação. As pessoas têm medo de doentes psiquiátricos, porque elas não sabem lidar com essas diferenças”. Nesse sentido, o desconhecimento dificulta a inclusão em diversos espaços da sociedade, principalmente na esfera trabalhista.
A falta de oportunidades
A inserção desses indivíduos no mercado de trabalho é pouco explorada. Muitos empregadores justificam a não contratação de doentes psiquiátricos alegando que eles podem apresentar “complicações” no ofício. “Tais dificuldades são entendidas como fenômenos culturais, ou que a pessoa tem um ‘gênio’ difícil. Quase nunca se observa uma questão de saúde envolvida. Mas o preconceito está sempre envolvido”, argumenta Renato.
A ignorância em relação a deficientes com PID está longe de ser uma novidade. Em 1987, a Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental revolucionou o modo como as instituições atendiam seus pacientes. Após o evento, manicômios e hospitais psiquiátricos foram fechados. Para substitui-los de maneira consciente, Centros de Atenção Psicossocial propuseram uma maneira mais humanizada de se dedicar às pessoas com deficiências intelectuais. Mas, mesmo com as diversas alterações realizadas por profissionais da área, a sociedade ainda não se soltou das amarras do preconceito. “O respeito deveria ser a base da interação das pessoas seja qual for sua diversidade”, reitera o psicólogo.
Veja também em ESQUINAS
A voz e o corpo da luta antimanicomial
Covid-19 vai gerar boom de pessoas precisando de ajuda psicológica, diz especialista
Lidando com múltiplas personalidades
Dentre um dos casos mais conhecidos de TDI, está o da britânica Melanie Goodwin, de 67 anos. Em uma entrevista para a BBC, Melanie, cofundadora da First Person Plural (Primeira Pessoa do Plural, em tradução livre do inglês), diz ter sido diagnosticada com o transtorno apenas aos 40 anos de idade. Suas múltiplas personalidades foram desencadeadas por abusos sofridos na infância, apesar de ela não tem nenhuma lembrança de sua vida no período entre seus 3 e 16 anos.
Após se informar mais sobre o assunto, constatou que possivelmente poderia ter a perturbação e comentou com seu marido, que concordou “Ele disse ter me perguntado se eu queria café um dia e eu disse: ‘Sim, adoraria um café’. No dia seguinte ele me perguntaria: ‘Você quer um café?’ e eu respondi: ‘Você sabe que eu não bebo café, sou alérgica a café!’”.
A partir disso, Melanie passou por um longo caminho até conseguir conviver tranquilamente com suas múltiplas personalidades, mas afirma que o acompanhamento médico desempenhou um papel primordial. De acordo com a reportagem, foi por meio de um laço forte com seu terapeuta que Melanie conseguiu conversar com suas diferentes partes e aprender a respeitá-las.
O papel do governo
De acordo com a neuropsicóloga Ailla, o dever do Estado vai além dos cuidados com a parte técnica. O governo deve proporcionar aos doentes psíquicos um tratamento digno e social, a fim de mostrar a eles que sua existência tem a mesma importância que a de qualquer outro cidadão. “O Estado pode criar centros de tratamento que viabilizem não somente o tratamento, mas também atividades que levem esses pacientes a ter dignidade, se sentirem úteis”, reforça a especialista.
Segundo Renato, o papel do poder público também se mostra imprescindível para mitigar a intolerância em relação aos deficientes intelectuais. “Com uma rede de atenção psicossocial adequada, a sociedade poderia receber a devida atenção para que houvesse uma melhor condição geral no tratamento das mais diversas mazelas do psiquismo”, finaliza.