Fim de uma era: como a antiga Apae paulistana se transformou com a inclusão - Revista Esquinas

Fim de uma era: como a antiga Apae paulistana se transformou com a inclusão

Por Beatriz Calais e Gabriela Del Carmen : agosto 19, 2020

Apae não oferece ensino especial para deficientes intelectuais e famílias ficam de mãos atadas; conheça o histórico e perspectivas da instituição

Em 1961, ao lado de um grupo de pais de crianças com Síndrome de Down, Jolinda Garcia dos Santos Clemente, carinhosamente chamada de dona Jô, fundou a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, a Apae, na capital paulista. A primeira organização Apaeana já havia nascido no Rio de Janeiro, sete anos antes, pela influência de Beatrice Bemis.

Ela era membro do corpo diplomático dos Estados Unidos e, ao chegar ao Brasil, não encontrou nenhuma entidade de acolhimento para sua filha com Síndrome de Down. Esse foi o pontapé inicial para que pessoas como Jolinda se identificassem e espalhassem a iniciativa pelo País.

Aos poucos, uma sociedade sem perspectivas para pessoas com deficiência viu as Apae (s) começarem a migrar das capitais para o interior e o sonho da escola especial se tornar uma realidade. Foi o primeiro vislumbre de esperança para pais que não tinham nenhum caminho educacional aberto para seus filhos, que não eram aceitos nas escolas regulares.

A organização cresceu com tamanha intensidade que, em novembro de 1962, foi criada a Federação Nacional das Apaes, no consultório médico do Dr. Stanislau Krinski, em São Paulo. Hoje, ela é o órgão articulador de mais de 2.200 escolas em municípios de todo o Brasil.

De Apae-SP a Instituo Jô Clemente

A estrutura da Associação se manteve estável por muito tempo, até que avanços nos estudos sobre ensino especial chegaram a um recorrente debate: a educação inclusiva. O modelo que propõe que deficientes intelectuais frequentem escolas regulares bateu de frente com as gigantescas Apaes, contestando a problemática de “segregar” crianças em ambientes diferenciados e impedir o progresso de socialização com todos os tipos de pessoas.

Em novembro de 2019, essas diferentes visões de ensino causaram uma ruptura. A Apae paulistana decidiu se emancipar, mudando de nome e direcionamento. Foi rebatizada de  Instituto Jô Clemente (IJC) em homenagem à fundadora da Associação em São Paulo, a Dona Jô, hoje com 92 anos.

 

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Segundo Roseli Olher, supervisora do Serviço de Educação do IJC, a decisão foi tomada principalmente pelo contexto político e social do momento. E talvez não tivesse acontecido sem a pesquisa incisiva de Maria Teresa Egler. A pedagoga foi responsável por ajudar a lançar, em 2008, o Decreto da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, que determinou que todas as pessoas com deficiência intelectual poderiam frequentar escolas comuns. Apenas no contraturno teriam atendimento de apoio. “Por meio desse decreto e em respeito a ele, a diretoria do IJC decidiu fechar a escola especial”, diz a funcionária, que está há 28 anos na Associação e participou de toda a sua trajetória e transformação.

“Eu trabalhei com pessoas com deficiência intelectual e elas apresentaram resultados surpreendentes em termos de desenvolvimento quando propusemos uma metodologia escolar comum a toda e qualquer criança”, diz Maria Teresa.

Roseli e Maria Teresa, assim como outros especialistas da área, lutaram para que existisse um ensino não excludente, que permitisse a convivência e integração social de todos os alunos. Porém, há um debate acerca da mudança, que não agradou a todos os afetados.

Pelo olhar das mães

Cíntia Gonçales é mãe do Lorenzo, jovem de 16 anos que tem Síndrome de Down. Há cinco anos ele começou a frequentar a unidade da Apae em Guarulhos, que desde sua fundação, em 1970, definiu-se como um serviço de educação especial. Cinco dias por semana, cinco horas por dia — na mesma proporção oferecida nas escolas comuns — Lorenzo passou a estudar com professores qualificados em educação de alunos com deficiência, e compartilha a sala com outros jovens que também possuem necessidades especiais.

Cíntia critica a postura do novo Instituto, que não beneficia Lorenzo, seu filho.
Acervo Pessoal

Para Cíntia, a mudança da Apae da capital não foi uma medida adequada, já que os serviços especiais necessários se tornaram apenas complementos no dia a dia dos alunos, e não mais existem em tempo integral. “Não são todas as pessoas que têm condição de pagar curso extracurricular, fisioterapia, fonoaudiologia e a terapia ocupacional”, afirma. Com a transformação do IJC, pais que não possuem condições financeiras de bancar atendimentos especializados ficam nas mãos de um encaminhamento da prefeitura ou precisam torcer por uma educação inclusiva realmente efetiva nas escolas públicas.

Simone Mayer compartilha desse mesmo ponto de vista. Seu filho de 31 anos, Marcos, também tem Síndrome de Down e começou a utilizar o serviço da Apae de Boa Vista, em Roraima, antes de completar um ano de idade. “Tentei colocá-lo em uma escola regular, mas não tive muito êxito. Ele não consegue ser alfabetizado, apenas tem noção de letras, números, cores… Não adiantava ficar em uma sala de aula comum”, explica Simone. Por esse motivo, exigir que Marcos estudasse em uma escola tradicional e tivesse os serviços especiais apenas como um complemento não traria resultados eficientes para seu desenvolvimento. Frequentando a escola especial, ele tinha educação básica e participava de atividades lúdicas, com jogos, danças, músicas e atuação.

Segundo Simone, não seria benéfico a Marcos mantê-lo em um colégio regular
Acervo Pessoal

Acessibilidade ao IJC

Em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, o Instituto tem capacidade de atender 360 alunos encaminhados pela Prefeitura. Porém, caso o estudante mude para uma escola estadual ou não seja selecionado pelo governo, as opções de ingresso se tornam mais escassas. É possível contratar o serviço do IJC como um curso particular — que conta com 80 vagas — ou verificar se o convênio médico da família cobre os custos.

“Quem faz os atendimentos são pedagogas, todas com especialização em deficiência intelectual ou educação inclusiva”, explica a supervisora. Apesar de oferecer aulas de 1h30 de duração duas vezes por semana, atendimentos especiais para jovens que visam ingressar no mercado de trabalho e acompanhamento psicopedagógico, o serviço não é um reforço escolar. “O objetivo é identificar as barreiras que o aluno apresenta para se desenvolver dentro da escola e no ambiente familiar e eliminá-las”, afirma Roseli.

Segundo ela, a mudança de direcionamento exigiu um complexo período de transição. “Na época (2008)  tínhamos 109 crianças matriculadas na escola especial. Nós fechamos a porta de entrada, ou seja, não matriculamos mais ninguém, e durante dois anos fomos conversando com as famílias. Orientamos a buscarem escolas comuns e contatamos as instituições regulares escolhidas por elas para instruir de que forma deveriam receber esses alunos”, relembra.

Para a supervisora, a grande diferença é que todos os alunos que frequentam o Instituto também cursam escolas comuns. “As outras Apaes [do Brasil] ainda trabalham com o modelo segregado de escola especial”, explica. Roseli conta que a maior mudança definida com a migração de educação especial para inclusiva foi atuar em conjunto com os colégios regulares. O Instituto realiza atendimento de apoio — como acompanhamento psicopedagógico — aos alunos em vez de substituir a escola, como era feito na proposta inicial. “É um modelo educacional especializado, a que todas as pessoas com deficiência e transtornos de desenvolvimento têm direito de acesso. Mas, para frequentar o IJC, devem estar matriculados e frequentando escolas comuns”.

Existe educação pública e inclusiva no Brasil?

Dentro de um cenário em que apenas uma pequena parcela da população pode acessar os ensinos particulares de apoio, é de extrema importância que as escolas públicas — estaduais e municipais — sejam adequadamente estruturadas para receber alunos com algum tipo de deficiência intelectual.

Roseli e Maria Teresa concordam que as municipais estão mais avançadas em relação ao atendimento dessas crianças. De acordo com elas, esses colégios entendem melhor a situação dos alunos deficientes, os professores são mais próximos deles e há uma maior preocupação em termos de atendimentos e profissionais de apoio do que nas escolas do estado.

A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, oferece estagiários de pedagogia que auxiliam os professores no trato com as crianças nas salas de aula e em atividades como levar ao banheiro, alimentar e higienizar.

A dona de casa Geise Mara Andrade conta que Ana Julia, sua filha de 11 anos, tem paralisia cerebral e estuda em uma escola do município de Irecê, na Bahia. “Eles sempre procuram adaptar as matérias para ela e procuram inclui-la em outras atividades. Eles têm esforço e empenho”, reconhece.

Segundo as especialistas, os colégios estaduais ainda precisam avançar muito no que diz respeito à educação inclusiva. A adaptação da infraestrutura e dos equipamentos, assim como de profissionais qualificados — que saibam lidar com as necessidades de cada aluno e respeitar o tempo e ritmo dos diferentes processos de desenvolvimento cognitivo – são peças-chave para essa questão.

Para Maria Teresa, o principal desafio é “convencer os sistemas de ensino de que o problema da inclusão não está na inserção desses meninos na escola, e sim no modo como a escola ainda ensina”. Ou seja, o sistema verticalizado, com professores acima e alunos abaixo, acompanhado de uma educação que preza pela repetição do que foi explicado ao invés de estimular o questionamento e buscar aprofundar conhecimentos.

A pedagoga completa: “Temos que trabalhar muito com os professores para que possam atuar de forma mais autônoma. Cursos, grupos de ensino, palestras, podcasts, vídeos”. Porém, para colocar tudo isso em prática, a educação brasileira esbarra em outro grande desafio: a superlotação das salas de aula, que atrapalha o rendimento da classe como um todo e impede a possibilidade de dar a devida atenção a cada aluno.

Simone, mãe de Marcos, diz que esse cenário em lenta construção a assusta e tira a sua confiança do sistema inclusivo. Ela conta nunca ter tido coragem de matricular seu filho em uma escola pública: “Mãe tem coração derretido pelo filho, se algo acontecer com ele, a gente sofre junto”.