Jogadoras relatam as desigualdades no futebol feminino brasileiro para além do 29 a 0
Apita o árbitro. Fim de jogo na Arena Barueri. A equipe feminina do São Paulo Futebol Clube soma mais três pontos no Campeonato Paulista com mais 29 gols em seu saldo. Do outro lado, o Taboão da Serra, ainda atônito, retorna para o vestiário. Não é todo dia que se é vencido por 29 a 0.
O placar da partida disputada no fim de outubro, por mais que impressione pelo desequilíbrio, não é novidade dentro do futebol feminino brasileiro. Em setembro de 2019, pelo Campeonato Carioca, o Flamengo aplicou 56 a 0 na equipe do Greminho, sem nenhuma repercussão. Já em 2020, o São Paulo bateu o Realidade Jovem por 12 a 0 e a Ferroviária venceu o mesmo Taboão da Serra por 14 a 0.
“Se você tem apoio, você vai conseguir. Agora, se não tem, não adianta, não vai.” Quem diz isso é a goleira do Nacional, de Manaus, Carol Rodrigues, 25 anos. Já a capitã da equipe do Taboão que sofreu a goleada para o São Paulo, Alieni Baciega, ou simplesmente Nini, 32 anos, afirma: “Não acho que o futebol feminino seja resistência, e sim persistência”.
Ao analisar o cenário futebolístico atual no Brasil, cabe a reflexão e o espaço de fala de quem realmente enfrenta isso no dia a dia. Por isso, seguem os relatos e percepções de quatro jogadoras de times paulistas, Nini, Carol, Leidiane Cardoso e Victória Thalita sobre a situação do futebol feminino no País.
90 minutos de jogo, uma vida inteira de batalha
“A renda dificulta demais viver de futebol feminino no Brasil”, relata Leidiane Cardoso, 21 anos, atualmente no Internacional. Segundo ela, existe uma grande disparidade de salário em relação ao masculino, mesmo com as jogadoras de alto nível.
Para Nini, como jogar em um clube é seu trabalho, é necessário o mínimo de condições para exercê-lo, o que não existe no caso do Clube de Taboão da Serra (CATS). “A gente não tem um centro de treinamento, alojamento, alimentação, salário e roupas de treino fornecidos pelo clube. São condições muito precárias.” Para ela, comprar uma casa ou um carro só é possível para quem joga em times grandes.
Victória Thalita, 20 anos, do AD Taubaté, segue na mesma linha. “Há dificuldades para viver de futebol feminino, tem times que nem têm condições de se manter, por falta de verba ou pouca verba.” Disputando o Campeonato Paulista pela primeira vez na carreira, Carol conta que, frente a esse cenário, a força de vontade e o apoio de fora fazem toda a diferença.
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Posse da bola e visibilidade
De acordo com Leidiane, a discussão sobre o papel da mídia em relação à visibilidade das mulheres no futebol é fundamental para reduzir a discrepância entre os times masculinos e femininos. “A mídia difere o futebol feminino do masculino. Ela rebaixa o feminino. Se ela mostrasse mais, isso acarretaria mais patrocínio, mais investimento e equilibraria os placares por conta da visibilidade que iríamos ter”. Victoria concorda, e diz que uma maior atenção das redes de televisão atrairia marcas e patrocínios, que são a principal fonte de renda das equipes.
Como lembra Carol, a evidência do futebol feminino no Brasil cresceu bastante durante a Copa do Mundo de 2019, na França. “Ela [visibilidade] ainda não é aquilo que queremos, mas está aumentando. Espero que num futuro próximo nós possamos ser muito maiores”, diz.
Nini, por sua vez, acredita que a visibilidade existe, reforçada pelos retornos financeiros milionários que alguns clubes recebem. Mas aponta: “Talvez precise de mais apoio nos clubes pequenos e nas categorias de base, ia melhorar bastante.”
Investimento é bola na rede
“Não tenho do que reclamar. O Nacional é um time bem preparado, com ótimos profissionais”. “O Taubaté oferece tudo para nós, a estrutura em geral é muito boa. Eles mantiveram os salários das jogadoras e da comissão técnica durante a pandemia.” Leidiane e Carol, respectivamente, não tiveram problemas com seus clubes ou dificuldades financeiras durante a pandemia.
Entretanto, essa não é a realidade de todas as equipes. Como relata Nini, o objetivo das jogadoras é buscar uma realidade melhor em outro lugar, uma vez que o CATS não fornece suporte. “Talvez não seja nem digno de chamar de estrutura, porque realmente a gente não tem. Boa parte disso é pela falta de incentivos de patrocinadores, mas a gente culpa o clube também porque o CATS não tem um projeto concreto para buscar patrocínio para o departamento de futebol feminino.”
Um suor que vale
Em meio a condições precárias e uma visibilidade que começa só agora a crescer, Leidiane lembra os períodos em que repensou sua carreira no futebol. “Às vezes dá vontade de desistir, sim. Temos problemas familiares, e se não tivermos renda para nos manter, temos que fazer escolhas entre ajudar nossa família ou jogar futebol”, diz.
Para Nini, a luta não é só para ela, mas para as próximas gerações: “Eu jogo futebol para incentivar as meninas mais novas a conquistarem seus sonhos. Era um sonho meu, então é gratificante vê-las realizando o sonho delas hoje.”