Em meio à crise global da medicina, estudantes relatam o aprendizado longe das salas de aula e hospitais
Sofia Moreira, 25, é estudante do quarto ano da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto. Há sete meses, ela alterna o calor intenso da cidade do interior de São Paulo com um apartamento no Guarujá, onde mora o namorado Dener, também estudante de medicina.
– Percebi a responsabilidade que vou ter como médica.
Sofia não frequenta mais salas de aula ou hospitais. Todas as atividades de ensino são feitas agora à distância. Assim como outras tantas instituições de ensino, a USP de Ribeirão Preto paralisou as aulas em meados de março por conta da pandemia do novo coronavírus.
Importância da profissão
A pandemia colocou no centro das atenções a profissão dos médicos, seja a nível nacional ou global. Para quem estuda medicina, isso trouxe um senso crescente de responsabilidade. “Tem uma pressão muito grande para você saber o que está fazendo”, contou Bruna Pellicciotti, de 27 anos, aluna de primeiro ano de medicina da Unitau (Universidade de Taubaté). “A gente precisou aprender sobre a covid-19 muito rápido e ainda temos pouquíssimas informações para suprir um questionamento tão grande”.
A rotina de Bruna – assim como de outros milhões de estudantes pelo Brasil – foi bruscamente alterada pela pandemia. Na medicina, há ainda um agravante: a área é indissociável da prática. As perdas de migrar para o virtual são inevitáveis e, em muitos casos, incontornáveis.
Para Luccas Pellicciotti, de 24 anos – irmão de Bruna e também estudante de medicina –, a mudança trouxe desânimo. Aluno do terceiro ano da HUMANITAS (Faculdade de Ciências Médicas de São José dos Campos), ele crava: “o ruim mesmo foi perder as disciplinas práticas”.
Via de mão dupla medicina
Sofia Moreira identificou uma dificuldade dos docentes para fazer a migração para o ensino remoto. “No começo, vários professores tiveram muita resistência: não tem como ensinar medicina sem ver o paciente”. Para os professores, além das eventuais dificuldades técnicas com o meio digital e dos desafios de ensinar medicina sem a prática, outro elemento também dificultou a transformação do ensino: muitos tiveram que dividir o tempo entre as aulas virtuais e a linha de frente de combate ao coronavírus.
Luiz Fernando Ferraz da Silva, de 42 anos, é vice-coordenador do curso de medicina da USP em São Paulo e coordenador do curso de medicina da USP em Bauru. Também ministra uma disciplina para alunos do primeiro ano e é do diretor do Serviço de Verificação de Óbitos da Capital, responsável por examinar os cadáveres de todo o município de São Paulo.
“Nunca trabalhei tanto na vida. De repente, todas as frentes em que atuo estavam desabando”, conta. “Tive que ajudar a adaptar os cursos de medicina, ajudar a adaptar a estrutura da USP e lidar com os óbitos que estavam começando a acumular. E, além disso, tenho um filho de 4 anos e tinha que fazer homeschooling”.
Para Luiz Fernando, algumas transformações no ensino de medicina podem ser permanentes. Ele prevê o surgimento de um modelo misto, combinando atividades presenciais e remotas. “Não dá para ensinar medicina só à distância, mas não dá para achar que os seis anos do curso de medicina acontecem só à beira do leito. Podemos usar ferramentas tecnológicas para tornar o curso de medicina mais moderno e eficiente”.
Os meses longe das atividades acadêmicas não necessariamente significaram que os estudantes de medicina cumpriram a quarentena. Segundo Sofia Moreira, foi comum ver, a partir de março, médicos (e futuros médicos) organizando churrascos e festas. “São as pessoas que você espera que respeitem o isolamento, mas é justamente quem diz que já foi exposto e pode viver a vida normalmente”, afirma Sofia, que seguiu o isolamento social ao máximo.
Retorno gradual da saúde
Aos poucos, a distância das salas de aula e centros médicos está sendo encurtada. A partir de setembro, algumas faculdades de medicina começaram a voltar às atividades presenciais, em especial, as instituições privadas.
Luccas Pellicciotti está frequentando novamente os hospitais. Ele explica que é necessário usar máscaras N95 e PFF2, que machucam o rosto. Elas deveriam ser descartadas após o uso, mas pelo preço elevado e dificuldade de serem encontradas no mercado, são lavadas com álcool para a reutilização.
As atividades práticas também retornaram na faculdade de Bruna Pellicciotti. Ela ainda não sai de casa, por ter eliminado parte das matérias – é formada em odontologia –, mas relata que os colegas têm gostado da volta. Mesmo o irmão Luccas estava prestes a desistir do curso quando soube da volta ao presencial. Apesar de não ter contato com os pacientes de covid-19, voltou à rotina hospitalar – desta vez concomitante à pandemia. “Com a profissão que eu escolhi, tinha que ser isso mesmo”, diz ele.
Agora, Luccas passa por uma rotina de cuidados toda vez que volta das aulas práticas na Santa Casa de São José dos Campos. Quando retorna para casa, a família mantém distância enquanto o passo a passo não termina. “Entro direto para a área de serviço, tiro toda a roupa e o que está comigo. Passo álcool em tudo, a roupa e o jaleco vão para lavar na hora e eu, direto para o banho.”
O contato com pacientes e o ambiente hospitalar é o que mais fez – ou faz, para quem não retornou – falta aos estudantes. “Onde eu mais aprendo é nas aulas práticas, conversando com o paciente, aplicando as técnicas, discutindo e vendo casos. Isso me dá motivação para estudar”, explica Luccas.
“Você precisa estar próximo do paciente”, afirmou Bruna. “Tive esse contato de entrar no hospital, ver como regras foram alteradas. Os profissionais não chegam tão próximos ao paciente, eles tentam evitar esse contato”, contou ela, que entre março e outubro acompanhou a avó em algumas consultas médicas.
Sofia Moreira ainda não teve nenhuma aula prática desde meados de março. Ela definiu essa distância dos pacientes em uma palavra: frustrante. “A parte que mais gosto e que me levou a fazer medicina é justamente ter contato com as pessoas”.