Nahome Andere e Rafael Lopes compartilham sua vivência na pandemia. Anna Helena Altenfelder, pedagoga e presidente do Conselho de Administração do Cenpec, avalia os impactos na educação pública do país
“Eu fiquei bem assustada. Tenho quatro filhos, dois bebês, um inclusive não andava no começo da quarentena… então eu fiquei em choque. Sem saber o que viria pela frente”. Foi o que sentiu, em março do ano passado, Nahome Andere, 36 anos, professora de sociologia da Escola Estadual Dr. Deodato Wertheimer, na cidade de Mogi das Cruzes. A educação foi um dos setores que não parou durante o período de quarentena, devido ao novo coronavírus, no Brasil. Muito pelo contrário, se desdobrou e se reinventou. No Estado de São Paulo, a Secretaria da Educação decretou férias de 21 de março a 21 de abril de 2020 para a rede pública estadual.
Durante esse período, foi criado o Centro de Mídias, uma plataforma governamental unificada na qual todos os alunos da rede têm três aulas diárias, gravadas pelo próprio estado e transmitidas pela TV e no YouTube. O problema é que estes estudantes deveriam ter sete aulas durante o horário letivo.
Disciplinas como a de Nahome foram remanejadas exclusivamente para plataformas online. Os professores puderam escolher aquelas que tivessem mais facilidade e que julgassem melhor, acessando pelo e-mail institucional. “A primeira dificuldade foi essa: aluno nem professor sabiam o que era e-mail institucional. Então a primeira coisa que eu fiz foi um vídeo de como acessar o seu e-mail”, explica.
Ela escolheu a plataforma Google Classroom. A primeira orientação era repassar o conteúdo para o Drive, mas o dispositivo não agradou Nahome. Anna Helena Altenfelder, presidente do conselho do Cenpec e doutora e mestre em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que é importante que os professores usem um ambiente onde
eles se sintam mais confortáveis para passar o conteúdo da forma mais eficaz possível aos alunos.
Altenfelder também ressalta que outro ponto positivo foi a agilidade das instituições de ensino na criação de ferramentas para que pudessem se adequar à pandemia, como, por exemplo, o Centro de Mídias. Por outro lado, Nahome aponta que o aluno sai sobrecarregado a partir do momento que tem que acompanhar vários plataformas, cada um de um professor. “Aquele exercício vai pro Drive, esse vai pro Google Classroom, aquela prova pro WhatsApp, isso cansa o aluno”, explica a professora.
Nahome ainda percebe que o Centro de Mídias não está cumprindo um papel de centralização de ensino, e sim apenas como uma plataforma disponível. “Como o que vale nota é o que o professor está passando, o que o aluno vai querer mesmo de fato? É o que tá contando alguma coisa. É assim que as coisas funcionam.” Da mesma forma, a centralização das tarefas da professora ainda é um desafio no trabalho remoto. “Em home office a gente entrou em um looping e eu não consigo mais sair. Nunca mais fui embora da escola.”
Em outro mundo, essa agilidade de remanejamento fez com que a preparação e treinamento fossem encurtados. Na Escola Técnica Estadual (Etec) Presidente Vargas, onde Rafael Lopes, 30 anos, é professor de língua portuguesa, o recesso foi de duas semanas. “Na verdade, a gente nem teve recesso, porque falaram que usaríamos a plataforma Teams e corremos atrás de treinamento”, explica Lopes. “O treinamento que recebemos da Etec foi o mesmo já tínhamos feito: vídeos do YouTube.”
Anna Helena avalia que é importante é garantir tanto um espaço para todos, como foi feito, mas é necessário treinamento adequado para isso. “É preciso um processo contínuo, por isso falamos de formação continuada de professores. Numa situação como essa, é preciso um processo mais longo consistente e imaginar que os professores, assim como os alunos, têm níveis muito diferentes”, analisa.
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Na Etec, além da plataforma de ensino unificada, foram disponibilizados aos alunos e professores chips com internet. Rafael conta que o Grêmio Estudantil foi bastante atuante e importante na preparação dos alunos, e os monitores tiveram contato direto com os coordenadores da escola. “Em duas semanas, a gente já conseguiu ter um bom levantamento sobre a situação dos alunos”. Mas, se por um lado, os estudantes deram apoio aos professores, faltou ajuda por parte do Estado. “Zero suporte. Só muita cobrança”, afirma Andere.
Na rede pública, existem o que são chamados de “professores eventuais”. Eles ficam de plantão e, no caso de falta, entram na sala de aula para substituir o professor ausente. “Agora, nós todos somos os eventuais”, compara Nahome. “Estamos trabalhando sem prazo nenhum. Até hoje eu tô recebendo atividade do primeiro bimestre.”Lopes também é professor da Escola Estadual Batista Renzi, no município de Suzano. Segundo ele, “a Etec cobra, mas ela dá suporte. O Estado cobra da mesma forma, mas ele não dá suporte.”
Referindo-se à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, Rafael diz que “na cabeça deles, todos os alunos estão ali presentes, estudando em situação ideal”. Porém, de acordo com o professor, os alunos não estão fazendo as atividades passadas. “Então, a gente tá sendo muito cobrado. Toda a pressão cai em cima do professor.”
Existe ainda a grande dúvida sobre se os alunos estão realmente aprendendo por meio das aulas online. Segundo levantamento do Instituto Crescer, 46% dos docentes não sabem se alunos aprendem em aulas online. “Não sei te dizer até que ponto os alunos estão acompanhando a programação das aulas, do Centro de Mídias”, compartilha Nahome. Para Rafael, a sensação é a mesma. “Eu tô passando conteúdo, eu não sei se eles estão adquirindo conhecimento”.
“Ainda é um desafio você saber exatamente o que os alunos sabem. É um aprendizado ainda a ser feito e descoberto à distância”, pontua Altenfelder. “No ensino remoto”, lembra a especialista, “fica muito mais difícil. Porque todas as práticas que a gente tem de observar, olhar, ter contato com os alunos, na câmera não acontece.” Esse vínculo com a escola e professores também é muito importante para a motivação da permanência dos estudantes no ensino.
Para Nahome e Rafael, esse contato é o que mais faz falta. “Eu sinto falta do vuco-vuco, lógico”, brinca Andere. “Eu sou professora que chora todo fim de terceiro ano. Você vê aquele menininho chegar no primeiro ano, sair homem, barbado.” Rafael, professor de literatura, explica como o contato é primordial para sua matéria. “Eu preciso conversar com eles, eu preciso daquela vivência, eu preciso levá-los ao pátio”, reclama. “Meus alunos até falam ‘professor, dá uma bronca, a gente tá sentindo falta’”.
Esse vínculo com a escola e professores é muito importante para a motivação e permanência dos estudantes na escola, segundo a pedagoga. Uma das ideias que quebra essa motivação, na opinião de Anna, é repercutir a ideia de “ano perdido” ou “buraco educacional”. “Eu não acho que a gente tem que pensar em um ano perdido. O ano vai ser perdido ou não a depender das próximas medidas e políticas educacionais”, aponta.
Para Rafael, essa caracterização é inevitável. “Perdeu, perdeu”, responde. “No estado eu acho que jogando uns dez aninhos aí a educação vai ficar bem complicada. Já tava perdida, agora então… um buraco negro” Nahome é mais otimista, considerando que, pela entrada na escola do treinamento tecnológico, mesmo que mal planejado, já se tem um aspecto positivo. “Não sei se é um ano perdido ou não, mas com certeza os alunos aprenderam menos. Sem dúvida nenhuma.”
Mas Anna Helena pede cautela. “É muito perigoso pensar que o ano não foi perdido, que os alunos tiveram aula online e tocar para frente”, reforça. “Se o ano que vem começar ignorando tudo isso que aconteceu, e já pressupor que os alunos de alguma forma desenvolveram competências e habilidades previstas, será desastroso.”