"Ficamos de mãos atadas": refugiados e imigrantes narram as barreiras de empreender na pandemia - Revista Esquinas

“Ficamos de mãos atadas”: refugiados e imigrantes narram as barreiras de empreender na pandemia

Por Camila Nascimento, Nathalia Jesus e Samira Paiva : setembro 28, 2021

 Equipe da empresa Reformax.

Depois da fronteira, imigrantes enfrentam barreiras para manter seu negócio aberto na crise, como problemas com crédito, língua e documentação

Com uma passagem de ônibus no bolso para chegar até a fronteira, um refugiado começou sozinho a sua corrida por melhores condições de vida. “Tivemos que buscar ainda mais formas de sair na frente”, afirma. A frase é recente, mas poderia ter sido usada há três anos, quando ele deixou a Venezuela em direção ao Brasil. As incertezas, desafios e busca por oportunidades marcam tanto a sua corrida para chegar no território vizinho, como para empreender nele.

Enmanuel Matute, de 30 anos, chegou em Roraima em novembro de 2018. Sem oportunidades de emprego formal, ele se juntou, durante a crise da covid-19, ao grupo de migrantes que decidem se reinventar para sobreviver em um país estranho. Mas, já na largada, imigrantes e refugiados saem atrás, impedidos de avançar por barreiras que envolvem desde o idioma até a burocracia para conseguir documentos e direitos básicos.

Imigrantes empreendedores

Formado em Engenharia Civil e com experiência no Ministério de Obras Públicas da Venezuela, Enmanuel criou, no final de 2020, a Reformax, empresa de “maridos de aluguel” especializada em reparos e reformas domésticas. Hoje, a equipe conta com cinco venezuelanos. “A situação forçou a gente a procurar uma forma de renda, sem depender de um emprego”, lembra.

O refugiado foi despedido do cinema em que trabalhava no início da pandemia. “Está difícil, quando fiquei desempregado com comércio todo fechado não tinha como entregar currículo, ninguém estava contratando”, conta. Na expectativa de validar o seu diploma no Brasil, Enmauel faz planos: “Eu quero levar o empreendimento de marido de aluguel para algo maior, poder fazer grandes reformas e construções”.

Para Miguel Pachioni, assessor de comunicação da ACNUR Brasil, facilitar o processo para que refugiados possam atuar em suas áreas de formação é fundamental para a integração, rotatividade econômica e ganho de mão-de-obra técnica. “O ideal é proporcionar a formação específica dessas pessoas e reconhecer os seus talentos. Temos que facilitar trâmites para que haja reconhecimento técnico desses profissionais”, afirma.

Abrir um negócio em meio à crise sanitária teve as suas complicações. “O nosso trabalho tem que ser na casa das pessoas, elas ficam receosas de deixar alguém entrar. Obedecemos às medidas de segurança, máscara, álcool em gel e mantemos o distanciamento. Estamos indo bem, mas está devagar, com certeza, se não tivesse a pandemia estaríamos melhor”, explica Enmanuel. Mesmo com a Reformax, ele conta que teve que recorrer a outros meios para se manter na pandemia: “Tive que sair pra vender brigadeiro na rua, porque estava bem difícil”. Outra solução foi fazer canecas personalizadas.

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Equipe da empresa Reformax.
Reprodução/Instagram

Cruzando mais uma fronteira

Segundo Miguel Pachioni, o “calcanhar de Aquiles” dos empreendedores migrantes na pandemia foi a conectividade, que impacta diretamente na forma de venda, em especial no momento em que o comércio físico tem restrições de funcionamento. “Em muitas famílias refugiadas, todos dependem de um smartphone para ter aulas e vender ou confirmar um serviço, dificultando o uso adequado de mobiles para fins comerciais”, diz. “Nem todas essas pessoas tinham o conhecimento sobre qual linguagem é mais adequada para cada mídia. Comunicar-se com o seu público é um problema”.

Enmanuel tenta fazer com que a Reformax cruze a fronteira do digital. “A gente distribui panfletos, mas as mídias são importantes. O Whatsapp, para falar com o cliente, e o Instagram, que é uma forma valiosa de conseguir serviços. Ainda estamos tentando fazer mais postagens, pouco a pouco estamos aprendendo”, ressalta

Com a urgência em buscar uma fonte de renda, a maioria dos imigrantes recorrem à informalidade. Com Enmanuel não foi diferente. Depois de dois meses esperando a chegada da sua mãe em Roraima, os dois seguiram viagem para Brasília e o venezuelano conseguiu, após meses, o seu primeiro emprego formal no País como atendente de um restaurante.

Recorrendo a outros meios

Há poucos quilômetros de Enmanuel, também em Brasília, a história mostra que os problemas para migrantes empreenderem ainda seguem sem solução. Henry Quisbert, de 53 anos, é de La Paz, na Bolívia, e mora no Brasil há 11 anos. Ele recorda que sua principal dificuldade ao chegar no País também foi a necessidade de gerar renda imediata, o que o levou a deixar de lado sua experiência como comunicador e procurar emprego no setor têxtil, área em que grande parte da população boliviana costuma se dedicar ao chegar em solo brasileiro. “Comecei a trabalhar com costura. Era o que tinha, procuramos emprego de oficina em oficina, porque tinha bastante delas”, lembra.

Há seis anos, Henry decidiu abrir a sua própria confecção. O boliviano explica o impacto do início da pandemia: “Em nível têxtil, todo mundo sentiu. A maior parte é usada pela comunidade, em fábrica própria e em lojas, mas fechou tudo. Nós ficamos de mãos atadas, com muito medo, não tínhamos de onde tirar uma entrada de dinheiro”.

Assim como Enmanuel, Henry recorreu a outros meios para garantir o sustento da esposa e dos três filhos. Além da oficina de costura, ele é organizador de uma rede que emprega animadores de festas infantis, a Payasito Trompetita, que leva o nome do personagem interpretado por ele há 19 anos. Mas, com o setor de eventos paralisado, o boliviano se viu obrigado a usar as economias de uma vida inteira: “Ainda bem que tínhamos um dinheiro que estávamos juntando na poupança”.

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Henry Quisbert como Palhaço Trompetita.
Acervo Pessoal

Dificuldades na adaptação

De acordo com Pachioni, o acesso ao crédito para refugiados e imigrantes é uma preocupação desde antes da pandemia, mas a falta de financiamentos e empréstimos na crise pode representar o fim de muitos empreendimentos. Enmanuel é um dos refugiados na luta por recursos: “Estamos na busca de um financiamento para comprar um veículo, que precisamos para o trabalho”.

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Outra barreira na adaptação é a língua. Há mais de uma década no Brasil, o sotaque ainda não desapareceu totalmente da fala de Henry. Ele revela sua dificuldade para aprender o novo idioma: “A gente veio de baixo mesmo, não tínhamos nenhuma base de como falar o português”. Já Enmanuel afirma que está em busca de dominar melhor o idioma. Miguel Pachioni ressalta a importância de oferecer canais para facilitar o diálogo com refugiados e imigrantes, para que possa “haver uma comunicação harmoniosa entre todas as partes”.

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Henry Quisbert e a sua família.
Acervo pessoal

Outro obstáculo, segundo o assessor da ACNUR, é a dificuldade no processo para regularizar seus documentos. “A grande maioria de migrantes são da Venezuela. Algumas entram no País de forma irregular e, na pandemia, com fronteiras fechadas, esse número aumentou. A documentação é o que permite que elas tenham acesso a toda perspectiva de ganhos e direitos, inclusive para o próprio negócio”, diz.

A diferença entre a chegada de Enmanuel e Henry no Brasil é de oito anos. Com origens e trajetórias diferentes, eles enfrentam até hoje as mesmas dificuldades para chegarem no seu objetivo de ter uma qualidade de vida no País que vieram para recomeçar. A burocratização, dificuldade na comunicação e desvalorização dos profissionais imigrantes e refugiados revelam um limitado senso de urgência com um grupo que se arriscou para deixar seu país de origem e que continua, diariamente, tentando “sair na frente” para romper barreiras e sentir acolhimento nos braços de uma mãe gentil.

Editado por Julia Queiroz e Anna Casiraghi.

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