Seja pela própria vontade, ou pela perversidade do tempo e dos interesses públicos, é certo que muitos famosos perderam o “hype”
Bingo: O rei das manhãs, longa-metragem lançado em 2017, retrata de forma verossímil a trajetória de Bozo, o clássico palhaço dos anos 1980. Por trás da maquiagem, está Augusto, pseudônimo de Arlindo Barreto (o verdadeiro comediante), que não se contenta em ser o anônimo mais famoso do Brasil naquela época. Todos conheciam a pintura facial e as brincadeiras do Bozo, mas poucos sabiam que um ator rejeitado encarnava o célebre personagem televisivo. Sem poder ser quem era, Arlindo começa a fazer o uso de drogas, buscando uma fuga da realidade e mergulha rumo à decadência do ídolo.
Ídolos que deixam de ser ídolos são uma face mais comum de uma realidade que se habituou a produzir e descartar personagens como se fossem produtos. A psicóloga Jacira da Silva Negreiros ressalta a dificuldade de adaptação das pessoas que se tornam famosas de uma hora para outra e em alguns casos contra a própria vontade. “A melhor forma de agir é entendendo primeiro que o objetivo da sua vida não é ter fama, aproveitar esse momento se houver algum benefício e se fizer sentido para a pessoa e colocar os devidos limites. A vida não pode se tornar um palco”, explica.
Nos casos de transformações de vida como o vivenciado por Arlindo Barreto, nas quais a fama se esvai para dar lugar ao quase anonimato, Jacira comenta que qualquer mudança pode ser um fator desencadeante, desde que a pessoa já tenha pré-disposição a algum tipo de transtorno: “Diante de fatores estressantes que a fama pode acarretar, assim como o fim dela, existe a chance da chegada de sintomas pontuais, que devem ser avaliados individualmente por psicólogos ou psiquiatras”.
Tão complexo quanto aceitar a chegada da fama é entender o fim dela. Por mais que não seja possível ser completamente esquecido, lutar contra o tempo e a perda de influência sobre os fãs é uma realidade difícil de aceitar. Mas há quem consiga lidar com essa situação. “Eu não deixei me contaminar muito pela fama, achar que aquilo ali seria uma coisa eterna, ou que eu fosse melhor que os outros e merecia alguma coisa em função da fama.” O autor desta frase é Marcelo Dourado, campeão do Big Brother Brasil 10. Em um país que anualmente se acostumou a jogar para o estrelato pessoas anônimas, tornando-as milionárias e midiaticamente conhecidas por meio de um reality show, o exemplo do ex-brother ajuda a compreender que nem sempre a fama é duradoura.
Dourado, que conversou com exclusividade para ESQUINAS, afirma que da fama ao praticamente quase anonimato foi um processo natural e sem conflitos. “Não tenho ressentimento da parte onde fui famoso, quando me expus, tem a parte boa e a ruim. Para mim, que sou um cara anti-social e convicto, voltar ao anonimato e a passar mais despercebido é maravilhoso”.
A relação entre ídolos e fãs
O envolvimento do ídolo com os fãs mudou muito da época de Arlindo Barreto e de Marcelo Dourado para cá. A internet aproximou as duas pontas dessa relação. Por meio das redes sociais, sobretudo Instagram, Twitter e TikTok, aumentou a interação das celebridades com os fãs. Mas é importante ressaltar a velocidade com que ídolos surgem e desaparecem atualmente, uma época em que há uma espécie de “descarte” de pessoas.
Além da atual internet, a já tradicional televisão ainda é um dos meios mais populares para a midiatização dos ídolos. Entre as milhares de programações presentes nas TVs, os reality shows carregam alta popularidade no Brasil e, por consequência, uma quantidade relevante de novos famosos. “A tecnologia veio para complicar e, também, ajudar. Isso depende muito das pessoas, a ferramenta não tem culpa”, disse Dourado, o ex-participante do Big Brother Brasil.
Ídolos em reality shows
Não só os vencedores dos reality shows, mas todos os outros participantes têm seus “dias de celebridade” dentro do programa. Com ênfase no Big Brother Brasil, o crescimento em número dos seguidores de seus participantes durante e após a saída da casa virou uma espécie de Ibope da atração. Não basta só transmitir, é preciso bombar nas redes. E é esse um dos motivos da necessidade crescente de transformação de anônimos em influencers. Basta aparecer no ar para conquistar seguidores.
Dourado explica a repercussão dos “brothers” ao saírem do programa: “Acho que ninguém que entrou no programa tem real dimensão do quão exposto, influente, popular e assediado você fica”. Depois do BBB 10, Dourado voltou à sua profissão, de educador físico, o que o faz enxergar à distância, fora do estrelato, as dificuldades de lidar com a popularidade, a invasão da imprensa, as pessoas invasivas e sua posterior queda. “Carinho de fã, boas reportagens, oportunidades de negócios, viagens, isso tudo eu acho que é importante e foi legal, consegui manter o que eu plantei naquele tempo. A fama vai diminuindo conforme você sai do programa”.
Longe dos holofotes, Dourado pretende dar sequência em seu trabalho focado em projetos de educação física e artes marciais. Ele está sempre ativo nas redes sociais, promovendo treinos e outros conteúdos voltados à área da atividade física. Fora isso, pretende conhecer novos ares e buscar desafios em território estrangeiro: “Tenho vontade de passar um tempo fora do Brasil, esfriar minha cabeça, conhecer novas realidades e viver diferente”.
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A fatura psicológica da fama
Para a psicóloga Jacira da Silva Negreiros, como o desejo de se tornar famoso é algo que muitos sonham para suas vidas, sobretudo entre os jovens, esse desejo faz com esses pretendentes a estrelas compreendam os desafios da exposição e da perda da liberdade que a fama traz. A psicóloga alerta para a importância da manutenção da saúde mental, uma vez que na era da Internet, os ídolos estão mais expostos às críticas e à cultura do cancelamento: “Entender que a fama é parte da sua vida e não sua totalidade, ajuda a perceber que colocar limites e saber filtrar as críticas faz parte de amadurecimento pessoal e evita sofrimentos futuros”, finaliza.