Atletas e treinadores relatam que, apesar de importante, auxílio ainda não é suficiente para sustentar integralmente os atletas beneficiados
Guadalajara, 2011. É a prova final da natação na disputa por medalhas nos Jogos Parapan-americanos. Dayanne Silva, uma potiguar de apenas 17 anos, está na briga por uma posição no pódio em sua primeira competição pela “seleção absoluta” (termo que ela utiliza para designar a seleção principal – sem ser de categorias de base).
A sensação? Talvez um pouco de nervosismo por ser muito jovem? Nada disso! Justamente por esse motivo ela estava solta na hora da prova, como uma garota que apenas desfrutava o momento e buscava se divertir ao máximo. “Pelo fato de eu ser tão jovem, eu estava me divertindo muito ali, era só nadar”, conta.
É dada a largada. Dayanne vem bem na prova, “brigando às cabeças” por um lugar entre os primeiros. Ela chega e bate na borda da piscina, o telão marca o segundo lugar. Porém, após uma medição mais rigorosa, é aferido que sua posição final é o terceiro lugar, por uma diferença de apenas 0,02s para a medalha de prata. Mesmo assim, o sentimento é de felicidade, já que era sua primeira medalha em Jogos Parapan-americanos. Para ela o significado é enorme, e o resultado, imensurável. Ver a bandeira do Brasil sendo erguida na premiação a deixa emocionada. Trata-se de um marco em sua carreira, o momento mais especial dentre todos os outros que lembra com carinho.
Muito jovem, ainda não tinha tanta maturidade para entender o real significado da conquista (que hoje, aos 29 anos, entende melhor), mas a sensação é de que operou um verdadeiro milagre. Isso porque conseguiu o impressionante resultado logo em seu primeiro Parapan, mesmo treinando em sua cidade natal (São Tomé, no interior do Rio Grande do Norte), onde relata não haver nenhuma estrutura.
Esse sucesso só foi possível graças ao programa Bolsa Atleta, ao qual Dayanne tem acesso desde 2007, ano em que iniciou no esporte de alto rendimento em campeonatos escolares. A atleta conta que esse benefício a auxiliou muito, principalmente no início da sua carreira, por conta dos altos preços dos materiais, e continua ajudando ainda hoje. “Eu tinha que ter um recurso por trás para eu me manter bem no esporte, porque minha família não tinha condições para dar esse suporte. Todas as medalhas que vieram depois foram consequências desse recurso que chegou até mim, e, claro, graças também ao meu resultado feito anteriormente”, relata.
ESQUINAS conversou também com Tiago Gorgatti, técnico da Seleção Brasileira de triathlon paralímpico, e com Evandro Lazari, treinador de atletismo e doutor em Biodinâmica de Movimento e Esporte. Tiago diz que “o Bolsa Atleta faz toda a diferença no desenvolvimento desses atletas”, enquanto Evandro diz que “o programa é extremamente importante por ser um dos maiores financiadores dos atletas”.
O Bolsa Atleta
O programa foi criado em 2003 e colocado em prática em 2005 durante o governo Lula, com lei sancionada pelo então ministro do esporte, Agnelo Queiroz. Os benefícios consistem em um patrocínio individual aos atletas para que possam competir. Segundo a descrição do site do governo federal, o programa garante condições mínimas para que os esportistas se dediquem, com exclusividade e tranquilidade, aos treinamentos e às competições.
Os beneficiados pelo programa são aqueles atletas que obtêm bons resultados em competições nacionais e internacionais. Para isso, devem cumprir requisitos como manter-se treinando, competindo e alcançando bons resultados nas competições qualificatórias indicadas pelas respectivas confederações. A lei entende que a principal prestação de contas do atleta ao governo e à sociedade é a obtenção de resultados expressivos nas disputas.
Há seis categorias diferentes, cujos valores mensais recebidos pelos atletas já são preestabelecidos: Atleta de base (R$ 370); Estudantil (R$ 370); Nacional (R$ 925); Internacional (R$ 1.850); Olímpico/Paralímpico (R$ 3.100); Pódio (R$ 5.000 a R$ 15.000).
Outra atleta que não imagina o que seria de sua carreira sem o Bolsa Atleta é Aline Rocha. A esportista de 30 anos participou das Paralimpíadas do Rio em 2016 na modalidade de corrida em cadeira de rodas e, além disso, foi a primeira brasileira a participar das Paralimpíadas de Inverno, quando competiu nos Jogos de Sochi 2018. Aline ainda possui inúmeras marcas como os recordes das provas dos 100 m, 800 m e 1.500 m da corrida de pista, além de todas as instâncias do esqui cross country. Contudo, assim como Dayanne, se não fosse o Bolsa Atleta, benefício que ela recebe desde 2013, Aline relata que a história poderia ter sido diferente:
“Se não fosse esse benefício, teria sido muito mais difícil. Apesar de não ser um valor tão alto no início, acaba dando uma certa segurança. Você sabe que tem a garantia daquele valor e consegue se planejar. Apesar de ser difícil e ter de buscar em outros lugares, com economias ali na ponta do lápis e com o Bolsa Atleta junto, eu consegui”.
Hoje, a atleta conta que já recebe um valor muito mais alto e que, em razão de seus resultados e de sua classificação no ranking mundial, consegue se sustentar com o Bolsa Atleta, pelo menos enquanto se mantiver no top 10. Conforme Aline explicou, o contrato é anual. Todos os anos entra um novo edital e, dependendo de sua colocação no ranking nacional, o valor a ser recebido é estabelecido.
O quadro de medalhas pós-Bolsa Atleta
O Bolsa Atleta abrange tanto atletas Olímpicos quantos paralímpicos, mas é nas paralimpíadas que é possível observar o maior impacto quando comparadas as medalhas conquistadas nas edições de antes e após a criação do programa. Em algumas edições, o número total registrado de medalhas chega a mais do que dobrar.
Algumas ressalvas
O programa trouxe uma série de benefícios aos atletas, mas essa concepção não é uma unanimidade. O Bolsa Atleta também tem as suas ressalvas e limitações, sendo a principal delas o valor – considerado como não suficiente para os esportistas se manterem integralmente no esporte.
Tanto o treinador Tiago quanto a atleta Aline mencionaram a questão do programa não cobrir os gastos com materiais, que são muito caros e se desgastam rapidamente.
Para exemplificar, Aline explica que as cadeiras de rodas custam R$ 30.000 e costumar ser adquiridas pelo próprio atleta, já que são feitas sob medida e os clubes costumam comprar apenas modelos com medidas padrão. Além dessa despesa, a manutenção também é cara, pois os pneus custam cerca de R$ 600, desgastam-se rapidamente e costumam estourar (o que aconteceu em uma final de maratona internacional que disputou).
O programa também não é suficiente para cobrir os gastos das viagens nem para custear a carreira toda, conforme apontado por Dayanne: “ele é suficiente para uma compra de suplementos, comprar um material para treino. Mas só dá para isso”.
Outra questão negativa é que não é permitida a soma de benefícios. Aline, que compete pelo esqui e pela corrida em cadeira de rodas, explica que recebe apenas pela modalidade em que está mais bem posicionada no ranking mundial. Dayanne também compartilha de um problema semelhante, e diz que, ao ter entrado em um novo projeto no início de 2021, o Paraprolim, ela teve de deixar de receber o Bolsa Atleta.
“Existem estados e municípios que também oferecem uma bolsa semelhante ao Bolsa Atleta. Eu acho muito válido, mas, uma vez que o atleta já tem bolsa federal, ele não poderia receber essa outra bolsa. Isso não acho vantajoso, eu acho que entra num conflito”, afirma Tiago Gorgatti.
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A forma com que o programa funciona também foi alvo de críticas do treinador. Ele afirma que o programa só se torna um facilitador a partir do momento em que o atleta conquista resultados, pois só assim ele consegue ter acesso ao Bolsa Atleta, o que o deixa desamparado no início da carreira.
Aline, pela sua própria experiência, conta o quanto foi difícil sua trajetória até que começasse a obter resultados para receber uma boa quantia. A atleta relembra o quanto teve que poupar todas as suas economias, viver numa quitinete de 20 metros quadrados, dormir em colchão de ar, além de não ter um lugar para treinar. “É nesse meio tempo que as pessoas desistem. Até chegar no top 10 do mundo (que é quando se recebe um valor melhor), muita gente já parou”, conta a atleta.
Além desse problema, Tiago, Evandro e Dayane ainda questionam o fato de o valor do Bolsa Atleta não aumentar há muito tempo – o programa em si não teve reajustes desde setembro de 2010, segundo dados do UOL. Assim, devido à inflação, “o poder aquisitivo do atleta é cada vez menor”, explica Evandro.
Os treinadores também teriam direito à categoria bolsa pódio, mas Tiago e conta que não recebeu o benefício nos últimos dois ciclos olímpicos por falta de verba. Outra falha identificada é com relação à diferença na premiação por medalhas recebidas entre o Paralímpico e o Olímpico. “É uma diferença de valores muito grande. Enquanto o olímpico vai receber 10 mil, o Paralímpico vai receber de 2 a 3 mil”, afirma o treinador.
Alternativas complementares ao Bolsa Atleta
Uma vez que o Bolsa Atleta passa longe de suprir todas as necessidades desses esportistas, eles revelaram quais são as alternativas a que recorrem para poderem continuar se mantendo. Dayanne, por exemplo, diz que é fundamental procurar outros recursos, seja dos clubes ou, no caso dela, até das palestras que faz, além da profissão que terá após terminar a faculdade de Nutrição em 2021.
O principal apoio que a maioria dos atletas tem são os patrocínios. Uma das parcerias de Dayanne é com uma marca de suplementos, a Dobro. Já Aline tem como principal apoiadora uma empresa de cadeira de rodas, a Jumper Equipamentos, que fornece o material necessário para as competições de esqui.
Também há uma série de projetos dedicados aos esportistas. O instituto Mara Gabrilli, coordenado por Tiago, é um deles. “Eu busco patrocinadores e reverto os recursos que eu consigo em benefícios para os atletas”, explica o treinador, dando como exemplo a parceria com a companhia aérea Latam, que fornece as passagens aos esportistas. A instituição tem seu escritório no shopping Eldorado e trabalha com cerca de trinta atletas.
Já Evandro participa do projeto chamado ORCAMPI, de Campinas, que se trata de uma estrutura de alimentação, transporte, pagamento de treinador, pagamento de fisioterapia, transporte para competição, plano de saúde, etc. O projeto atende mais de 5.000 atletas e contempla todas as etapas da formação esportiva, como captação de talentos, formação, aprimoramento técnico e alto rendimento.
Outro instituto é o Paraprolim, do qual Dayanne faz parte. Trata-se de um projeto da Marinha que, assim como o Bolsa Atleta, é patrocinado pelas loterias Caixa. Por esse motivo, ela não pode receber os dois benefícios. Além do valor maior, ela também enxerga como vantajoso ter o nome das forças armadas vinculado. “Isso dá um aumento de visibilidade, mostra a força do Paralímpico. E é um projeto que a gente quer levar pra frente, a gente quer crescer, tem muita criança boa lá. Acho que tem grandes nomes para saírem de lá”, finaliza.