Constrangimentos e privações durante a jornada escolar levam população trans à evasão; confira possíveis políticas públicas para mudar este cenário
Em março de 2022, a Folha de S. Paulo denunciou agressões físicas contra duas estudantes trans em escolas do Sudeste do país, uma em Mogi das Cruzes e uma em Niterói. De acordo com uma pesquisa feita em 2017 pela Rede Nacional de Pessoas Trans no Brasil, 87% dos estudantes transexuais abandonam os estudos entre os 14 e 18 anos.
Além da repressão e do preconceito, a desinformação sobre o processo de hormonização e o uso incorreto de nomes e pronomes provocam frequentes constrangimentos no dia a dia daqueles que persistem nos estudos.
Bullying transfóbico
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), em parceria com a UNESCO, realizou a pesquisa Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro. Foram entrevistados 120 pais e responsáveis por crianças ou adolescentes transgêneros em 17 estados brasileiros. Dentre as pessoas entrevistadas, 77,5% informaram que seus filhos entre 5 e 17 anos já foram vítimas de bullying transfóbico no ambiente escolar.
O preconceito reside em atos cotidianos. O uso de sanitários, uma situação banal para a maioria, acaba se tornando um embaraço. A menstruação, por exemplo, é geralmente atrelada como característica apenas feminina, mas para um homem trans que não tem ou teve acesso imediato ao tratamento de hormônios, isso também é parte de sua rotina. É o caso de Diego Bittencourt, de 18 anos, que em entrevista à Folha, relatou que após ser vítima de ataques transfóbicos durante o ensino médio, passou a ter vergonha de utilizar o banheiro. “Quando eu menstruava, eu dava um jeito de ir o mais rápido possível, enfiava o papel e saía. Eu também amarrava uma blusa na cintura para não aparecer a mancha e, às vezes, chegava em casa sujo”, relata.
O estudante Peter Fernandes, de 18 anos, também ilustra como o ato de utilizar o banheiro é frustrante. “Eu desenvolvi um medo de ir ao banheiro em locais públicos. De três escolas que eu estudei depois que comecei a transição eu nunca pisei nos banheiros de lá. No cursinho eu ainda me sinto mais confortável e consigo ir ao banheiro, porque confio mais nas pessoas de lá, mas se eu consigo, prefiro não ir fora de casa.”
Políticas públicas
Um método de evitar a desistência e promover a inclusão de pessoas trans nas universidades foi a aplicação de cotas para pessoas trans. Peter explica: “Eu estou fazendo cursinho enquanto espero minhas aulas começarem. Estou matriculado em Ciência e Tecnlogia na UFABC, e lá as aulas só começam em setembro, então para ter uma base melhor de matérias de ensino médio, eu continuei num cursinho popular (…) Na UFABC eu consegui entrar por cotas de pessoas transgênero, foi a primeira universidade que eu vi que tem isso, e eu achei incrível, eles tem duas modalidades, uma para pessoas trans independente de renda e outra para pessoas trans em situação de vulnerabilidade econômica”.
Em maio de 2022, o Órgão Especial do Tribunal de São Paulo determinou que a população escolar trans masculina seja incluída pela prefeitura de São Paulo na política de distribuição de absorventes menstruais. Destinada a estudantes da rede municipal em situação de vulnerabilidade, a lei tem o objetivo de impedir a evasão escolar durante o período menstrual.
Outra intervenção educativa (que não tem relação com o governo) é o conteúdo feito por influencers destinados ao público trans. Um exemplo é o canal Transdiário, feito pelo publicitário Luca Scarpelli, que explica: “Construí um tipo de conteúdo que eu queria que existisse quando eu comecei a menstruar. Por isso resolvi fazer esse guia bem prático sobre menstruação voltado para pessoas trans masculinas. Porque vamos combinar: a gente não tem muita referência que converse com a gente sobre esse assunto. Todo tipo de informação sobre menstruação é muito cis-normativo”.
Pensando no desconforto com o uso do sanitário, a SP Escola de Teatro, com o apoio do coletivo sociocultural de inclusão SP Transvisão, criou os banheiros unissex, divulgado em nota: “A circunscrição do espaço privado em nosso espaço público não terá vez dentro de nosso conceito de território livre indiscriminatório”. Para a ativista, cantora e ex-funcionária da escola Renata Peron, “é importante a sociedade compreender e respeitar a identidade da pessoa, seja do homem trans, seja da mulher trans, para que ela possa utilizar o banheiro sem medo de ser violentada. Eu achei a iniciativa muito bacana da escola acolher o nosso pedido, para acabar com essa coisa da separação. E super funcionou, está até hoje lá!”.
Peter Fernandes vê o momento atual com ansiedade e otimismo: “Ser estudante no Brasil é um caos: todo dia dá medo de sair na rua e ficar doente, medo de tudo voltar a fechar, ter que estudar por EAD novamente, ver os cortes de verbas nas universidades é assustador. Mas é maravilhoso poder ver que eu consegui entrar numa Universidade mesmo com a pandemia. Vindo de escola pública e sendo trans, é bom ver que cada vez mais vão ter oportunidades para pessoas trans. Claro que nada é um conto de fadas ou as mil maravilhas, mas eu consigo ter um sentimento de tranquilidade, sabendo que eu consegui entrar”.