Conheça algumas histórias de sobreviventes do colapso do prédio no Largo do Paissandu na última semana
Os repórteres de Esquinas foram ao local do incêndio do Edifício Wilton Paes de Almeida no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, que aconteceu na última terça-feira (01). Dentro de um contexto de ocupações e movimentos sociais, o prédio virou pó diante dos olhos dos ex-moradores, pedestres, agentes do governo e voluntários. O aglomerado de barracas, doações e escombros é agora apenas um sinal do descaso frente os desabrigados, das queixas dos sobreviventes e de uma luta que não deve parar com o incidente. Leia duas histórias recolhidas pelos repórteres de Esquinas e conheça mais dessa história.
Expulsos sem causa
por Gustavo Ramos
A fumaça que sobe dos escombros no Largo do Paissandu não é mais densa o suficiente para cobrir o sol e amenizar o calor das duas horas da tarde. A temperatura do dia, o medo disfarçado de curiosidade e a aglomeração de pessoas. Tudo isso é somado para resultar em uma atmosfera impenetrável. Na Avenida São João, o trânsito é afunilado pela massa de pessoas que se acotovelam contra as grades que isolam as proximidades do que restou do Edifício Wilton Paes de Almeida.
Rodeadas por um mar de gente, entre finas cercas de ferro e os degraus de pedra da Igreja Nossa Senhora do Rosário, foram erguidas cerca de vinte barracas onde os antigos moradores do edifício se estabeleceram. A correria não diminui mesmo além do isolamento montado. Não há tempo para descansar: agentes de apoio andam a passos rápidos, quase correndo por entre as barracas e colchões, crianças brincam com assistentes sociais e senhoras procuram algum resquício de sombra para se refrescarem.
Em meio à correria, uma figura parece destoar em um canto, sentada sobre um colchão velho tão fino que parece só estar ali para trazer um pouco de conforto ao olhar. Ângela da Silva Batista, de 33 anos, uma moradora do edifício e sobrevivente do incêndio, arrumava algumas malas doadas ao seu lado. Com movimentos calmos, sua postura chama atenção.
Batista conta que nasceu em São Paulo e morou até os 19 anos no Aricanduva, na Zona Leste da capital. Sua vida mudou de rumo quando seu pai morreu em um acidente de carro e sua mãe, então, decidiu ir ao Paraná, levando os dois filhos do primeiro casamento. Sozinha na selva de concreto. “Fiquei em São Paulo, porque a oportunidade de vida aqui é melhor”, afirma.
Tentando seguir adiante na terra da garoa, conheceu Ronaldo, seu atual marido, que estava em uma situação semelhante, desabrigado e morando na rua com dois filhos. Juntos, conseguiram encontrar um quartinho apertado em um prédio na rua General Osório, onde permaneceram por um tempo.
No Centro da cidade, começam a trabalhar como carroceiros. Recolhendo metais e materiais recicláveis para vender, conseguiam levantar uma renda para manter a família com o mínimo para viver. Nesse momento, Batista fica grávida do marido. Desesperada para achar um local digno para residir, acabou sendo levada a acreditar em muitas armadilhas.
Ela levou um golpe, que os deixou sem chão e sem teto. Haviam-lhe prometido um apartamento alugado, já mobiliado, com seis meses de aluguel pagos. “Tínhamos ganhado uma casa, com documento assinado e tudo. Tiramos nossas crianças da escola e vendemos nossas carroças”, diz com voz desanimada, enquanto movimenta os dedos de forma repetitiva, como se tentasse entender o porquê das coisas desandarem novamente. No local, encontraram um ambiente vazio e abandonado. A caridade foi uma farsa, o antigo dono repassou a dívida para os novos donos. Voltaram às ruas, sem nada e com o nome sujo.
Depois de passar por quatro abrigos, começou a fazer parte dos movimentos de ocupação. Morou duas vezes na ocupação que ocorreu em outubro de 2012 em um prédio na Avenida Duque de Caxias, na República, cerca de um quilômetro de distância dos escombros deixados pelo incêndio na terça-feira, dia 1º. Quatrocentas pessoas participaram da mobilização na época.
Há quatro anos mudou-se para o edifício modernista que ocupava a esquina no Largo do Paissandu. No edifício Wilton Paes de Almeida, Batista morava no sétimo andar. O dia a dia era normal, conta. As tarefas eram divididas entre os moradores, e todos deveriam ajudar realizando diferentes atividades. “Tinha determinados dias em que a gente ficava encarregado da limpeza dos andares. Sempre que tinha uma reunião a gente era avisado com antecedência, participávamos de todas para saber o que devia ser feito”, recorda a mulher. Os filhos dos moradores frequentavam as escolas e creches da região, de onde já chegavam em casa tendo almoçado e jantado.
Trabalhando quatro horas por dia no período da manhã, com a ajuda do Programa Operação Trabalho (POT), Batista e o marido conseguiam tirar o sustento da família. Estavam conseguindo comprar móveis, roupas, comida e pagar as taxas que eram cobradas pela moradia. Tinham até um cachorro. Estabeleceram-se bem no local. Mas a intenção não era ficar, “ninguém quer ficar ali dentro para sempre, a ideia sempre foi sair. A gente ficava, porque sabia que alguma hora alguém iria olhar para a gente”.
No dia do incêndio, à uma hora e meia da madrugada, ela se lembra de achar que estava acontecendo uma briga, por conta da gritaria vindo de fora do apartamento. Por conta da escuridão que tomava conta do quarto, teve dificuldade em achar a chave para abrir a porta. Ao sair para o corredor, deparou-se com o calor e assistiu às labaredas subindo as escadas. No desespero, o marido e ela pegaram as crianças e fugiram, deixando tudo para trás, inclusive o cão. “Voltei atrás para pegar o cachorro. Ele se escondeu debaixo do sofá. Tentei pegar, mas eu tenho um bebê de dois anos, precisava ir”, diz com a voz pesada de sentimento.
Os dois enteados se machucaram na fuga, em decorrência do fogo e do vidro que explodia com o calor. O marido está internado na Santa Casa, com queimaduras. Ângela tem ficado sozinha com o outro filho, levando ele a pé todos os dias para a creche na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Ela também continua com o serviço pelo POT, limpando a Praça da República todos os dias pela manhã.
“Estamos aqui pelo menos na esperança de receber alguma coisa, já que saímos só com a roupa do corpo”, comenta enquanto começa a mudar de posição, já quase na hora de sair para buscar o filho na creche. Tinha que ir. “Queremos garantia de que vamos sair daqui com alguma coisa, algum lugar, uma casa, qualquer coisa. Até agora só tivemos promessas”, completa.
Versos de fé e luta
por Marina Lourenço
O sol do meio-dia iluminava e aquecia o Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, enquanto os ex-moradores do Edifício Wilton Paes de Almeida e grupos de apoio realizavam diferentes tarefas em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário. Uns distribuíam doações, outros varriam a rua, comiam, descansavam, brincavam, concediam entrevistas ou gritavam palavras de ordem. Além das centenas de pessoas, o espaço fora ocupado por toneladas de produtos doados, barracas, colchões, malas e cartazes com frases como “Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito.”.
Deitado em um dos colchões, um homem alto, branco, de cabelo grisalho, um longo bigode handlebar, vestindo calça jeans e uma camisa social listrada azul e branca, lia um jornal que noticiava as possíveis causas do incêndio que acometera o prédio na madrugada do dia 1º de maio. Antônio Davi, de 76 anos, morava há um ano e três meses no quinto andar do prédio, onde as chamas do fogo se iniciaram.
Por volta da um hora e meia daquela terça-feira, a conflagração começou no edifício. Desespero, gritos, correria, ferimentos, mortes, desabrigo e traumas. Esses foram alguns dos resultados do desabamento do imóvel que era ocupado por cerca de 150 famílias.
“Ninguém gosta de morar em ocupação. Quem mora tem pretensão de sair logo porque sabe da barra pesada que é, tanto no sentido sanitário, quanto social”, comenta Davi ao relembrar seu começo de estadia no local. No Wilton Paes, não era bagunça. Tinha portaria e todos que entravam na ocupação faziam um trato sobre não consumir drogas lá dentro, não bater em mulher e não roubar. Davi abre uma bala de sabor iogurte, leva à boca e fala o porquê de estar sem barraca no momento: a prioridade é para as pessoas que têm crianças.
Nascido e criado em uma cidade rural da Bahia até os 13 anos de idade, o senhor que não quis ter a imagem publicada fazia parte de uma família de classe alta. Seu tio era o prefeito e seu pai mexia com negócios relacionados a ouro. Ao mudar-se para São Paulo acompanhado pelo pai, Davi foi matriculado em um colégio católico, onde aprendeu muitas matérias e reforçou suas crenças religiosas, as quais ele segue até os dias de hoje.
Anos depois seu pai viria à falência. Contudo, Davi conquistou independência financeira, chegando a ganhar 500 reais por dia como vendedor freelancer, intermediando negócios, principalmente de gráficas. Houve épocas em que também trabalhou registrado para algumas firmas paulistanas. Morou nos bairros da Vila Mariana e do Ipiranga. “Quem me conhece sempre me convida para trabalhar, sempre fui honesto e relatava aquilo que fazia, que deixava de fazer ou que poderia melhorar”, explica o senhor. Durante essa lembrança, ele retorna ao presente e diz que um ex-patrão foi procurá-lo preocupado com a possibilidade dele ter morrido no incêndio.
Em 1963, Davi decidiu concorrer a uma dentre as poucas vagas da época para o curso de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Conta que, quando foi participar do processo seletivo, duvidou de seu potencial ao deparar-se com o grande número de interessados. A prova consistia em uma redação. Foi aprovado e, para sua surpresa, durante o primeiro dia de aula um professor o elogiou perante toda classe.
Por problemas financeiros, cursou um ano e meio da graduação e teve que sair da faculdade. Seus orçamentos de ganho e gasto começaram a ser encurtados. Mesmo mudando de emprego, as circunstâncias não melhoraram. Pelo contrário, a renda diminuía gradativamente.
Foi durante seus recentes trabalhos de vendas que o baiano conheceu a ocupação no Wilton Paes, a qual abrigava um de seus clientes. Morar ali seria uma boa alternativa. “Meu relacionamento era ótimo com as pessoas dali. Eu tinha uma amiga, a Thelma, que morreu carbonizada junto com os dois filhos. Muitos morreram”, revela com tristeza.
A normalidade do dia anterior fez com que ninguém pudesse imaginar o que estaria por vir. Após mais um dia de trabalho, no entardecer da noite, Antônio Davi havia chegado ao seu apartamento, que continha eletrodomésticos, colchão, televisão, rádio e jornais espalhados pelos cantos. Estava sem sono algum e resolveu começar a escrever uma música que futuramente queria oferecer à Igreja de Fátima. Foi quando ouviu gritos de pavor estridentes e sons de passos apressados surgindo pelos corredores.
Com o dedo indicador levantado, ele estipula o prazo que teve para sair do prédio em chamas: um minuto. Quando conseguiu escapar de fato do perigo, vestia somente uma cueca e segurava nas mãos seus documentos e uma calça. Isso foi tudo que conseguiu salvar a tempo. O imóvel estava repleto de colchões e madeira fina, combustíveis fortes para um incêndio.
Hoje Davi permanece ocupando a região gradeada da amarela Igreja Nossa Senhora do Rosário, com medo do caso ser negligenciado pelas autoridades. Além disso, garante que ainda conseguirá lembrar seus versos escritos na música devota à sua fé, que viraram parte da fumaça nebulosa e cinzenta que cobriu o céu do Largo do Paissandu durante o início do Dia do Trabalhador.