Cresce a demanda por asilo humanitário no Brasil. Afegãos não pedem apenas visto e estada no país, mas também comida, cobertores, camas, trabalho e dignidade
É um longo percurso até o fundo do Terminal 2, na área de embarque B, mezanino. Quem vem de São Paulo ou regiões próximas anda bem menos que as pessoas deitadas no chão do Aeroporto de Guarulhos. Normalmente passando por outros países do Oriente Médio, os refugiados afegãos fogem do Talibã, grupo extremista que retomou o poder no país. São 13.595 quilômetros em busca do verbo “existir”. Na prática, todos os que pisam em solo brasileiro não têm outra escolha a não ser lutar por melhores condições de vida.
A imigração é um fenômeno que assola o mundo contemporâneo. Com as diversas dificuldades em algumas regiões, como fome, guerras, crises econômicas, políticas e sociais, os indivíduos sentem medo de permanecer em sua pátria; essa insegurança resulta no desejo de recomeçar a vida em outro país, que possa oferecer melhores condições para os imigrantes.
Essas movimentações são recheadas de violência: perseguições armadas, tráfico humano e de drogas, contrabando, falta de condições básicas para a sobrevivência, estupros, entre outros. São principalmente aqueles mais vulneráveis os que mais sofrem nessa passagem, entre eles as crianças.
Fuga e exílio
No total, 110 pessoas estão vivendo em barracas improvisadas com cobertores e carrinhos de malas do GRU Airport, somando-se às outras quase 2.000 pessoas que já chegaram ao País desde janeiro de 2022. A situação no aeroporto é resumida entre marmitas abertas, chinelos jogados no chão, mantas, colchões de ar e muita improvisação. De acordo com Danielle, é um campo de refugiados, mesmo que o nome correto seja descaso.
Por conta de segurança, o nome de todos os refugiados entrevistados nesta reportagem foi trocado por nomes fictícios. Muitas vezes, eles são condenados políticos pelo governo do Talibã e fogem para o Brasil para salvar a própria vida. Akin é uma das vítimas dessa situação, está há uma semana em São Paulo. Ele veio sozinho para o Brasil, é um dos homens solteiros que ocupam o primeiro “bairro” entre as cadeiras do aeroporto. Sua família está dividida entre alguns parentes que permaneceram no Afeganistão e outros que fugiram para o Paquistão. “A situação deles não é boa”. Akin ainda tem contato com todos, mas afirma que é difícil e que “tudo está mal”.
Segundo o entrevistado, os voluntários têm sido sua única fonte de doações. “Eles nos dão comida três vezes por dia, café da manhã, almoço e janta. Também ajudam com remédios.” Mesmo quase sem nada, ainda oferece café a todos que passam pelo local, alguns curiosos, alguns repórteres e muitos ajudantes.
Além de Akin, Rahma também permanece sem outras respostas. Grávida, sozinha, com 20 anos e mais duas outras crianças escondidas atrás de sua saia, ela diz que prefere não ser fotografada. O menino, filho mais velho da jovem, é mais sociável e brinca com todos os que passam. Talvez pela inocência, mas principalmente pelo olhar esperançoso. Acostumado com as voluntárias, eles brincam na mesinha que divide as cadeiras.
“Estamos ensinando a jogarem o jogo dos palitinhos”, afirma Danielle, que conversa com os pequenos em inglês, mas tem um outro refugiado afegão auxiliando na tradução, já que as crianças ainda não aprenderam a língua. “Além dessas atividades, também oferecemos aulas de português em conjunto e de cultura brasileira. Todas as voluntárias ajudam como podem.”
País do futebol
Uma das pautas que não saem da boca dos afegãos é o futebol. Alguns apaixonados pelo esporte se reúnem assim que uma bola verde e amarela entra em cena. “Estamos muito animados para a Copa do Mundo”, diz Akin, que também arrisca algumas embaixadinhas.
Quando o Afeganistão era governado pelo Talibã, a seleção nacional ficou de 1984 a 2001 sem disputar uma partida. O hiato chegou ao fim junto com o governo do grupo extremista no país. Com a nova ascensão ao poder, o campeonato nacional já foi paralisado, e os “Leões de Khorasan”, como a Seleção Afegã também é chamada, devem ficar mais um grande período sem atuar.
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Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, deu um panorama da situação vivida no Afeganistão: “Nós podemos dizer que existe certa estabilidade interna, mediante um governo que é altamente repressivo. O Talibã sempre teve essa característica, aliás, subiu ao poder mediante uma vitória dentro da guerra civil afegã nos anos 90”.
Sobre o Talibã, o professor continuou: “Tornou-se um ator relevante nesse sentido e que tem premissas particularmente radicais — eu evito usar essa palavra, mas acho que é a palavra mais adequada no que se refere a interpretações islâmicas políticas, e dessa maneira ele tem primazia, tem força. Quando nós falamos da retomada do Talibã no poder, então estamos falando de um retorno vinte anos depois da invasão norte-americana que pretendia, pelo menos nos documentos, a reconstrução democrática de um país, que consequentemente pode ser visto como um projeto fracassado, tendo em vista que esse grupo político, que foi removido lá em 2001, retorna em 2021”.
Mais de 5 mil vistos humanitários
Buscando ajudar os refugiados, o governo brasileiro anunciou no dia 3 de setembro de 2021 a autorização de vistos humanitários para pessoas vindas da região, que é assolada por um conflito há décadas. Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, o Brasil autorizou nos últimos doze meses cerca de 5,8 mil vistos humanitários aos imigrantes refugiados do Afeganistão. Desde então, o Brasil tem visto uma chuva de pedidos de ajuda que não se resume apenas à saída do Afeganistão e ao desembarque na cidade de São Paulo. Quando chegam em solo nacional, os afegãos precisam de comida, cobertores, camas, abrigo, trabalho e dignidade.
Na busca por melhores condições de vida, os afegãos são recebidos em situação precária no estado de São Paulo. Não têm direito sequer a um banho, se não pela ajuda de ONGs voluntárias nos arredores de Guarulhos. Mesmo com a existência dessas entidades, a demanda, para as mais de 100 pessoas abrigadas no aeroporto, é maior do que instituições não vinculadas ao governo podem cobrir.
Segundo Danielle Soares, antropóloga e linguista que estuda cultura afegã e é voluntária no aeroporto, o governo brasileiro não pode ignorar o que está acontecendo. Em sua jornada de seis meses ajudando os refugiados em Guarulhos, Danielle viu de tudo, menos alguma solução para o problema. “O governo deveria oferecer um local para eles ficarem, mas até agora apenas um hotel, que já está superlotado, foi disponibilizado para os afegãos”, afirma a voluntária. Os refugiados dependem de doações e ações de instituições da sociedade civil, como a Missão Paz São Paulo e a Caritas, e alguns Centros de Acolhida Especiais para Imigrantes, como o da Bela Vista, localizado na Rua Japurá, mas que já tem sua capacidade esgotada.
“Um dos maiores desafios que os refugiados enfrentam é a adaptação com a cultura e com a língua”, diz Sheika Aline Sobral. Sheika se coloca na linha de frente, ajudando no acolhimento dos refugiados e na sua adaptação com a língua e cultura, dando aulas de português. Representante da União de Mulheres Muçulmanas do Brasil e do coletivo Frente Afegã, ela comenta que não existem políticas públicas para ajudar os afegãos, que acabam procurando as embaixadas dos países em que foram abrigados. Além disso, a socióloga mencionou que o Estado brasileiro tem emitido vistos por conta de inúmeros acordos internacionais que o Brasil possui.