Ataques xenofóbicos dispararam após 1º turno das eleições de 2022; de que forma a opressão intelectual ao Nordeste se tornou estratégia da agenda bolsonarista?
Luiz Inácio Lula da Silva obteve a vitória parcial no primeiro turno das eleições presidenciais do Brasil, com 48,43% dos votos válidos, contra apenas 43,20% de Jair Bolsonaro. Indignado com o resultado da primeira votação, e pressionado diante do iminente embate direto com seu maior rival ideológico, o então presidente atribuiu publicamente que o desempenho do petista na corrida presidencial se daria por conta do analfabetismo da região nordeste do país.
“Lula venceu em 9 dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo. Vocês sabem quais são os estados? No nosso Nordeste, não é só a taxa de analfabetismo alta o mais grave nesses estados. Outros dados econômicos agora também são inferiores nas regiões, porque esses estados no Nordeste estão há vinte anos sendo administrados pelo PT”, disse Bolsonaro em uma live realizada por meio de sua conta no Youtube no dia 05 de outubro de 2022.
Além disso, o ex-presidente atribuiu a falta de oportunidades de estudo e o “fraco” desenvolvimento econômico na região Nordeste exclusivamente aos governos anteriores de Lula: “onde a esquerda entra, leva o analfabetismo, leva a falta de cultura, leva o desemprego, leva a falta de esperança. É assim que age a esquerda no mundo todo. Por isso que o Nordeste está atrás de quase todos os índices levando em conta os outros estados. Porque sempre a esquerda dominou”, apontou.
A banalização do exercício político na região Nordeste é uma prática bolsonarista comum, ferindo o princípio democrático que iguala todos os votos independentemente de classe, gênero, cor ou escolaridade. Este é um exemplo do que a filósofa Marilena Chauí define como o autoritarismo naturalizado na sociedade brasileira, que vela as estruturas enraizadas do preconceito e das violências no cotidiano. A mestre em Ciência Política Alessandra Lopes explica o processo de naturalização da xenofobia na sociedade brasileira e conta por que essas relações autoritárias se escancaram em momentos políticos.
“Quando se fala em preconceito, é comum pensar em uma perspectiva cultural, que se passa por brincadeira, como chamar os nordestinos de ‘cabeça chata’. Porque essas falas são naturalizadas por meio das práticas do cotidiano, sendo constantemente reproduzidas. Mas a agressão fica evidente em momentos tensos”, exemplifica a professora. “A política exacerba essas diferenças, porque tem a ver com a disputa de poder, decidir quem é que vai definir o rumo do país. É aí que aquela brincadeira da ‘cabeça chata’, que consegue colocar o copo na cabeça e dançar, já não é mais uma brincadeira, porque se trata da disputa pelo governo do país. Então, fica claro a grande violência cultural por trás dessas brincadeiras, quando são usadas para deslegitimar alguém.”
Além de estereotipar a opinião política e a intelectualidade de uma região de nove estados e cerca de 56 milhões de habitantes, esse preconceito também se prova incorreto: na edição de 2023 do ENEM, o Nordeste liderou a lista de regiões com a maior quantidade de notas máximas na redação, cujo tema era “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. O estado do Ceará foi o que mais registrou notas máximas nessa competência.
Alessandra também comenta que um dos mecanismos para a disseminação do preconceito é a omissão dos eventos históricos que desfavoreceram o desenvolvimento da região Nordeste, relacionando as fraquezas econômicas e sociais às características culturais dos próprios nordestinos, naturalizando um lugar de suposta inferioridade.
“Existiram áreas de atração e áreas de repulsão na história do desenvolvimento econômico no Brasil. O Nordeste foi uma área de repulsão em vários momentos. Em contrapartida, o Sudeste foi planejado para ser a área de atração industrial no século XX, o que levou vários nordestinos ao estado de São Paulo em busca de oportunidades. Então essa é uma lógica que existiu em vários momentos da história. Os ciclos econômicos fazem isso mesmo, e a falta de desenvolvimento no Nordeste foi um descaso político, assim como o problema das secas.”
Todo esse processo levou a um apagamento e descredibilização do Nordeste como voz política, em que nordestinos são segregados física e socialmente do debate político, que tem como centro as regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. O estudante João Pedro Gadelha, potiguar de 21 anos que mora em São Paulo desde 2022, conta sobre algumas experiências como nordestino na capital paulista: “eu já ouvi muitos comentários, sobre como nordestino não sabe votar, que o Brasil está desse jeito por causa do Nordeste, várias coisas que vão daí para pior. Então, em muitas situações eu nem me posiciono sobre [política]. Eu prefiro não comentar ou entrar na conversa por saber que vai existir esse julgamento prévio sobre minha opinião e o meu pensamento só por causa do lugar de onde eu venho”.
Portanto, a estratégia de medir a opinião política de nordestinos a partir de méritos como escolaridade ou poder aquisitivo se provou efetiva ao bolsonarismo, uma vez que promove a inferiorização dessa população, que se sente intimidada e silenciada pelos ataques, potencializados pelo uso da internet e das redes sociais. “Quando o assunto é política, principalmente relacionada à última eleição, eu fico muitas vezes coagido em falar sobre, porque eu sei que muitas pessoas tem uma visão prévia de que, por eu ser nordestino, o meu pensamento vai ser de tal forma, que já existe essa questão na mente das pessoas”, complementa João Pedro.
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A Safernet, ONG que busca proteger os direitos humanos no ambiente digital, registrou um pico de denúncias de xenofobia na internet após o primeiro turno das eleições, no dia 03 de outubro de 2022. Lula teve um percentual de 66,7% dos votos na região Nordeste, o que permitiu a ele vantagem sobre Jair Bolsonaro. Após os ataques xenofóbicos em massa, o preconceito contra nordestinos foi enquadrado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) como crime de racismo previsto pela lei 7.716/89 a partir do Recurso Especial (REsp) 1.569.850.
Tal Recurso Especial utilizou duas postagens feitas através das redes sociais como objetos de representação para exemplificar o discurso de ódio sofrido pelos nordestinos no ambiente digital: uma delas dizia “Ebola, olha com carinho para o Nordeste”, e a outra “(…) graças aos flagelados nordestinos que vivem de bolsa esmola”. Ambos os casos foram julgados pelo crime de racismo.
Nesse sentido, os autores dos ataques virtuais acreditam que os nordestinos merecem ser afligidos por doenças graves, assim como dignos de passarem por mazelas como a baixa escolaridade ou os problemas climáticos. O estudante João Pedro cita uma situação que viveu como nordestino vivendo em São Paulo.
“Na última eleição, eu assisti à apuração dos votos com a família de um amigo meu daqui de São Paulo, e o pai dele fazia diversos comentários sobre como o Nordeste não sabia votar, sobre como merecia ser do jeito que é. Como se o Nordeste fosse um lugar ruim, e ainda fosse ruim por causa da opinião política que tem, de forma geral.”
Além disso, o preconceito entre classes também pode ser percebido nos discursos de ódio, uma vez que a opinião política da classe de menor poder aquisitivo é associada apenas ao assistencialismo promovido pelos governos petistas, como se o único motivo possível pelo qual os nordestinos votassem em Lula seria por conta do apoio financeiro oferecido às classes vulneráveis, subestimando a sua capacidade crítica.
A partir desse contexto, observa-se uma lógica de colonialismo interno entre as diferentes polaridades políticas, assim como entre regiões distintas do Brasil, em que o Sudeste e Sul do Brasil oprimem a região Nordeste, em que a classe de maior poder aquisitivo se enxerga como superior intelectual e politicamente, abrindo margem para oprimir aqueles que discordam de sua agenda política.
Nesse sentido, há uma oposição entre duas visões de Brasil, uma colonizadora e outra colonizada, dentro do próprio país – uma dualidade entre uma sociedade considerada “arcaica” e “subdesenvolvida” ante uma metrópole centralizadora, liderada pelo eixo Rio-São Paulo.
Nesse tipo de discurso, o Nordeste brasileiro faz as vezes de uma colônia interna do Brasil, formando o estereótipo de que a população é inferior à da metrópole, abrindo a prerrogativa para o ódio bolsonarista ridicularizar e diminuir a força política da região, através de uma imposição autoritária que parte da própria sociedade, retomando o conceito de sociedade autoritária de Marilena Chauí. A partir dessa perspectiva, a distância entre regiões promove não apenas uma segregação geográfica, mas também social e política, como completa Alessandra.
“Essa desigualdade regional, que é a marca estrutural do Brasil, gera um silenciamento, que por sua vez produz esse desconhecimento. E a gente julga aquilo que desconhece. O que falta é transformar a desigualdade em diversidade regional, ressaltando o que há de bom, o que há de resistência, de heroísmo, força e violência, já que cada estado tem a sua história.”