A uberização é o futuro do trabalho no Brasil? - Revista Esquinas

A uberização é o futuro do trabalho no Brasil?

Por Ananda Miranda, Isabelli Aquino, Lorena Oliveira e Luiza Lopes : julho 24, 2023

Em tese, o modelo permite flexibilidade, autonomia e uma certa informalidade benéfica presente nas relações de trabalho/Foto: Luiza Castro/Sul21

Nova lógica de gestão do trabalho tem impactado as profissões do mercado e os modos de vida contemporâneos dos brasileiros

Em 2022, o número de trabalhadores brasileiros sem carteira assinada bateu recorde com alta de 20,8% desde 2012, segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A mesma pesquisa revelou que o número de trabalhadores por conta própria também aumentou, formalizando um crescimento em 7,2% no ano, o que significa o acréscimo de mais de 1,7 milhão de pessoas nessa condição. Tanto aqueles que têm carteira assinada, quanto aqueles que dispõem de seus próprios negócios são contratados como pessoas jurídicas, com CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), e não recebem por garantia os direitos trabalhistas concedidos aos trabalhadores de carteira assinada, como 13º salário, FGTS e seguro-desemprego. 

Isso ocorre porque, de acordo com a Constituição do Trabalho (CLT), não há uma relação de emprego estabelecida formalmente entre o proletariado e a empresa, já que este vínculo depende de algumas características. Entre elas, a remuneração periódica, cumprimento de horário pré-determinado e prestação de serviços para uma companhia determinada. Nesse contexto, emerge o termo “Uberização”, responsável por representar não só uma nova lógica de trabalho e principal tendência para o futuro, mas também uma mudança no que diz respeito às diferentes formas de gestão, controle, gerenciamento e organização do trabalho (Abílio, 2017; Fontes, 2017; Amorim; Moda, 2020). 

Em tese, o modelo permite flexibilidade, autonomia e uma certa informalidade benéfica presente nas relações de trabalho. No entanto, o conceito sugerido como uma inovação para o mercado, do qual sua intenção positiva advém em grande parte da Uber, empresa prestadora de serviços na área de transporte urbano privado por meio de aplicativo, também leva os adeptos ao sistema aos diversos riscos da atividade profissional não regulamentada, como a possibilidade de trabalho excedente a oito horas diárias, salários inconstantes e indefinidos e exposição a perigos e insalubridades. 

Apesar das incertezas e riscos, para os cerca de 13 milhões de desempregados no Brasil (IBGE), tentar a sorte pode valer a pena, uma vez que trabalhos alternativos viabilizam auxiliar em renda extra, ou garantir o sustento diário, ao menos enquanto o cenário de empregos formais permanecer pessimista. Sobretudo para pretos e pardos, que mesmo sendo a maior parcela racial do país somam uma taxa de desocupação ainda maior em relação aos brancos, o quadro não aparenta ser mudado tão em breve, pois a raça enquanto tensão social é somada a classe e gênero. Dessa forma, as desigualdades passam a ditar como funciona o mercado de trabalho: mulheres são mais atingidas pela informalidade do que homens e recebem menores rendimentos, apesar de, por vezes, exercerem função semelhante (Centro Internacional de Pobreza do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Pnud). 

A plataformização do trabalho

A nova dinâmica, que em verdade já não é tão recente, decorre de um processo estrutural da aplicação e manutenção do capitalismo em diferentes formas. Para a socióloga Ludmila Abílio, o trabalhador “uberizado” não necessariamente está vinculado à subordinação às redes sociais, e a uberização pode ser entendido como um fenômeno complexo que atravessa o mundo do trabalho como um todo e que, no fundo, sintetiza outros processos que já estavam em curso. “Eu entendo a uberização como uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho; falar isso tem uma complexidade, pois isso diz como se é subordinado, como o tempo e valor do seu trabalho é organizado e definido, como os direitos trabalhistas entram nessa história”, afirma em entrevista ao Pauta Pública. 

Segundo Ludmila, há três elementos centrais que atravessam e pressionam o mundo do trabalho e consequentemente se articulam com muita força na uberização. O primeiro é a transformação dos trabalhadores em trabalhadores sob demanda, ou seja, um trabalhador que passa a ser utilizado como um fator de produção; se perde as garantias sob quanto se trabalha por dia, como esse trabalho é distribuído e quanto se ganha. 

Em 2017, a Reforma Trabalhista legalizou isso, regularizando já na categoria de trabalho intermitente um trabalhador que é formal, mas vive como sob demanda. Segundo a Lei nº 13.467, de 2017, no Artigo 443, 3º: “O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente”; “Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria”, completa o páragrafo. 

O segundo elemento chama-se autogerenciamento subordinado, e se resume a uma tentativa de parar de chamar o trabalhador de empreendedor de si. “O mundo do trabalho reconfigurou as formas de disciplinarização da gente, e novos paradigmas foram se formando nas últimas décadas. Estes últimos paradigmas vão entender que nós ‘somos bons gerentes de nós mesmos”, argumenta. O capitalismo e as políticas neoliberais fazem constantemente a apologia do empreendedorismo para vender a ideia de que é possível ser um trabalhador livre, sem patrão, com total autonomia, sem horários rígidos para cumprir, nem ordens hierárquicas. Esta estratégia de sedução é, porém, ilusória e falaciosa, uma vez que o que resta ao trabalhador é a intensificação do trabalho, mais encargos e menos ou ausência de direitos trabalhistas. 

Por fim, como terceiro elemento, o próprio processo de informalização do trabalho, uma vez que o gerenciamento do trabalho ainda é inteiramente subordinado ao que a empresa define. O trabalhador não é um autônomo, pois ele não tem poder de negociação nenhuma; “o trabalhador está inteiramente subordinado a empresa, que vai definir que corrida que vem, quanta corrida vale – e então entra a ideia do processo de informalização, porque você tem uma perda de formas estáveis das regras do jogo”. 

“As regras operam sobre o trabalho o tempo todo, mas elas são um enigma, não são decifráveis. Você passa a viver regido por regras que vão definir quanto você trabalha, porque se eu preciso ganhar aquele mínimo por dia, que eu estabeleci para mim mesmo como um ‘bom auto gerente’, eu posso até estar disponível, eu sob demanda, mas eu não sei o quanto que eu vou ter que trabalhar para ganhar aquele mínimo. São definições que vão determinar os modos de vida e as condições de trabalho de cada trabalhador”, conclui. 

Fernando Oliveira, 45 anos, começou a trabalhar como motorista da Uber em 2021 após perder o emprego CLT em uma empresa privada. Em entrevista à reportagem, ele conta que no primeiro momento trabalhou em período integral, acreditando que teria uma renda maior, mas depois começou a estabelecer uma meta com base nas despesas diárias. “Eu não tive sucesso por conta das despesas na rua, entre café da manhã, almoço e café da tarde, e depois comecei a entender que precisava sair em horários que o fluxo era maior e em determinadas regiões”, afirma. 

“No meu caso, a relação com custo benefício é muito pequena porque eu trabalho com o carro próprio e isso gera um desgaste no carro, com as manutenções, combustível, seguro, licenciamento e no final, a conta acaba não fechando positivamente”, acrescenta. 

O algoritmo como novo patrão 

Os elementos apresentados são potencializados pelo gerenciamento algoritmo do trabalho. A questão da algoritmização ultrapassa a esfera do trabalho e é um elemento que representa uma mudança de paradigmas no que se refere às empresas mais potentes e que tem um enriquecimento operando de formas obscuras. 

Em “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”, Marilena Chauí apresenta o conceito de sociedade autoritária; no caso, a sociedade brasileira seria autoritária e a partir dela provêm diferentes manifestações de autoritarismo político. A figura da plataforma digital e do algoritmo, por sua vez, que agora substitui a do patrão, invisibiliza e torna ainda mais abstrata a percepção das violências e regras de mando e obediência presentes na relação trabalhista. 

O trabalhador, agora inserido em um sistema algorítmico, como se fizesse parte de um jogo de videogame, impulsionado por imagens, sons, cores, frases, incentivos gráficos luminosos, brilhantes e coloridos, a continuar apertando o botão e aceitando as corridas, tem sua subjetividade capturada do trabalhador. 

O trabalho gerido por plataformas digitais e por algoritmos exerce um controle intenso sobre os trabalhadores, sendo uma espécie de sistema panóptico que permite a vigilância e o controle dos trabalhadores. Esta é uma das novas faces do designado capitalismo de plataforma, como aponta Nick Srnicek, e também revela a sociedade no mais alto grau de autoritarismo, vide Chauí. 

De fato, os atuais trabalhadores “uberizados” são diferentes dos operários de décadas passadas. Eles, porém, compartilham algo em comum: ambos são vítimas da exploração e violência da sociedade autoritária. Como afirma o sociólogo João Areosa, “as plataformas praticam a gestão pelo medo; o medo de ser desconectado e de ficar sem a sua fonte de subsistência. O medo de não cumprir as metas estipuladas pela organização caso não estejam conectados um elevado número de horas diariamente”. 

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Os rumos do trabalho

A flexibilidade do trabalho que conduz à uberização está longe de ser uma inevitabilidade econômica decorrente da globalização; ela é, acima de tudo, uma decisão política e, ao que tudo indica, o futuro do trabalho no Brasil. Como aponta Sadi dal Rosso, ao introduzir jornadas flexíveis no processo de trabalho, o capital está movendo um mecanismo que converte tempos de não trabalho em tempos de trabalho, trazendo para a esfera de controle do capital horas laborais que estavam sistematicamente fora de sua dominação. 

Por outro lado, ele reorganiza horários laborais de maneira a transformar a produção de valor mais adequada e produtiva, atendendo antes às necessidades do capital do que às necessidades da força de trabalho. Hoje, os vínculos laborais estáveis e permanentes são vistos como um privilégio cada vez mais raro. A informalidade será a “nova Era”, caso não se consiga inverter esta tendência global. 

“Os motoboys existem há décadas, mas eles eram socialmente invisíveis. De alguma forma, pelo papel que eles tiveram na nossa vida na pandemia, por eles se organizarem politicamente, a gente enxergou […] A gente olha para eles porque intuitivamente sabemos que o que tá em jogo ali não se restringe apenas a esse trabalhador; esses elementos estão pressionando e entrando capilarizadamente pelo mundo do trabalho”, afirma Ludmilla. 

Para a socióloga, “CLT é o ponto de partida”:  “todos os movimentos de dores e as conquistas é para unir a força de trabalho com o ser humano. O trabalhador tem que ter direito a descanso, tem que poder envelhecer, ter direito à educação, ao lazer, algum transporte de qualidade, direito a adoecer e não ser descartado.”

Editado por Mariana Ribeiro

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