“Falta boa vontade da maioria” para combater a pobreza em uma cidade com bilionários e pessoas em situação de rua, diz Pai Denisson D’Angiles, porta-voz de ONG
A erradicação da pobreza na cidade de São Paulo é um desafio permeado por questões sociais, políticas e econômicas. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2023), “Em 2023, a população em situação de rua no Brasil atingiu aproximadamente 296 mil pessoas, representando um aumento de 935% nos últimos 10 anos.”
Em meio a esse cenário, organizações não governamentais emergem como pilares de apoio, suprindo lacunas deixadas pelo poder público. O Instituto CEU Estrela Guia, que há 10 anos atua na capital paulista, é um exemplo disso.
Fundada a partir da vivência pessoal de Denisson D’Angiles (Pai Denisson D’Angiles) – que é Pai de santo e membro do Conselho Consultivo da ONU – e sua esposa, Kelly De Angiles (Mãe Kelly De Angiles), que há 25 anos foram tocados pela realidade da pobreza, a ONG realiza um trabalho diário e abrangente para combater a fome, promover a educação e fomentar o empreendedorismo social.
Para acompanhar o trabalho da ONG de perto, fomos a campo. Ajudamos na distribuição de marmitas para pessoas em situação de rua, um trabalho realizado das 20h às 21h30 de terça e quinta-feira, na frente da Prefeitura de São Paulo, na Praça do Patriarca. No dia da visita, o frio era intenso. No local, o trabalho é feito entre sorrisos e brincadeiras, para que, por um momento, as pessoas que passam por ali não precisem pensar na dura realidade em que vivem. Além das refeições, também são distribuídos cobertores. Pai Denisson destaca que as refeições também são distribuídas de segunda a segunda na praça.

Trabalho solidário de partilha de refeições para a população em situação de rua – Foto: Reprodução/Instagram (@ceuestrelaguia)
Foto: Reprodução/Instagram (@ceuestrelaguia)
Atualmente, o Instituto conta com 22 cozinhas que servem entre 2.500 e 3.000 refeições diariamente para a população em situação de rua. Além disso, oferece suporte educacional e de empreendedorismo para moradores em situação de rua, mulheres vítimas de violência, a comunidade LGBTQIA+, idosos e jovens.
Os dados sobre a pobreza em São Paulo são alarmantes. Segundo Pai Denisson, que cita dados da FAO, UNESCO e ONU, existem 98 mil pessoas em situação de rua na cidade, um aumento drástico em comparação com as 22 mil registradas durante a pandemia.
A cidade de São Paulo tem cerca de 1 milhão e 800 mil pessoas que passam fome ou não têm acesso ao alimento
Afirma Denisson, complementando que aproximadamente 8 milhões de pessoas sofrem de algum tipo de deficiência alimentar. Para ele, esses números são inaceitáveis para uma cidade da grandeza de São Paulo.
A falta de acesso a esses dados pela população é uma preocupação. Pai Denisson aponta que:
Dificilmente isso vai ter um acesso, até porque não é de interesse do poder público. As pessoas querem esconder
Ele relata que a prefeitura, por vezes, “esconde” as pessoas em situação de rua, mas não oferece soluções efetivas para sua segurança alimentar e física. O entrevistado também menciona que já foram impedidos de distribuir marmitas, sendo acusados de “tráfico de marmitas”, e que houve tentativas de criar leis que criminalizassem o combate à fome e a caridade. Essa situação, segundo ele, gerou constrangimento internacional, com um questionamento da ONU sobre as ações do Brasil para sair do mapa da fome.
A manutenção financeira dessas iniciativas é outro grande desafio. O Instituto CÉU Estrela Guia recebe pouco apoio do setor público, a maioria das doações e convênios são do setor privado. “Tudo vem de arrecadações daqui e dali. Às vezes, falta em casa” revela Pai Denisson, destacando o sacrifício pessoal envolvido. O Instituto atende cerca de 18 mil famílias por mês, que vivem em situação de vulnerabilidade social, incluindo ocupações precárias.

Trabalho solidário de partilha de refeições para a população em situação de rua – Foto: Reprodução/Instagram (@ceuestrelaguia)
Foto: Reprodução/Instagram (@ceuestrelaguia)
A presença da ONG em frente à Prefeitura de São Paulo é simbólica. Apesar de não ter sido uma escolha planejada para “tocar” o poder público, Pai Denisson compartilha uma história pessoal: seu avô foi morador de rua na Praça da Sé nos idos de 1900. Ele questiona a eficácia das cozinhas e escolas municipais, que funcionam apenas até as 17h, deixando as pessoas sem alimentação durante a noite. A falta de oportunidades de emprego para pessoas em situação de rua, que enfrentam discriminação e estigmas, também é um problema.
Para a erradicação da pobreza, Pai Denisson enfatiza a necessidade de “boa vontade de todo mundo”, não apenas do poder público, mas também da sociedade civil e dos empresários. Além disso, acredita que se todos compreendessem que poderiam um dia passar por essa situação, a disparidade social não seria tão gritante. A falta de acesso a necessidades básicas como água potável, que é considerada alimento pela ONU e UNESCO, também é ressaltada.
A solução, segundo Pai Denisson, não reside em partidos políticos ou empresas, mas no “despertar do ser humano”, naqueles que têm a oportunidade de fazer a diferença e não fazem. Afinal, se todo mundo fizesse um pouco, não existiria a fome, a pobreza, muito menos tantas pessoas vivendo numa situação que nem essa. A crença é que a única diferença entre um astrofísico e uma pessoa em situação de rua é a oportunidade.
O Instituto atua de domingo a domingo, com Pai Denisson e Mãe Kelly realizando entregas de alimentos como pães, tortas, cobertores e meias durante a madrugada. Embora outras pessoas e instituições também realizam esse trabalho, as ONGs frequentemente enfrentam críticas e impedimentos. A dedicação é visível: “Eu gostaria de estar aqui entregando comida para essas pessoas. Mas se eu não fizer isso… essas pessoas vão passar fome e vão morrer. Como vai ficar minha consciência?”, questiona Pai Denisson.
Como já mencionado, o Instituto CEU Estrela Guia oferece suporte educacional e também cursos de empreendedorismo para pessoas em situação de vulnerabilidade. Mas em nossa experiência de campo com o Pai Denisson, ele também levanta um ponto válido: Quem vai querer dar emprego para as pessoas em situação de rua?
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Realmente, existem diversas questões que precisam ser resolvidas antes dessa população ser reintegrada na sociedade. Assim, existe um caminho a ser percorrido, e é necessário que haja estruturas para acolher essas pessoas. Sobre essa questão, conversamos com o cineasta Carlos Eduardo Magalhães, residente na Ocupação Nove de Julho. Em nossa conversa diversos pontos foram levantados principalmente a questão do preconceito existente contra as ocupações na sociedade Paulistana.
Para Carlos uma das soluções para acabar com a extrema pobreza na cidade de São Paulo é que o governo cumpra com a constituição e dê às pessoas moradia. Assim, ele explica que, apesar de todo o preconceito com que as pessoas enxergam o movimento dos sem teto do centro (MSTC), o movimento é legalista, e busca não apenas ocupar lugares vagos na cidade, mas oferecer às pessoas residências legítimas, que pagam imposto e estão plenamente integradas na sociedade. Esse foi o caso do Hotel Cambridge, lugar real na cidade de São Paulo retratado no filme de ficção documental dirigido por Carla Caffé “Era o Hotel Cambridge”.

Residencial Cambridge (2023) / Foto: Renata Bitar/g1
Foto: Renata Bitar/g1
O Hotel Cambridge era um hotel de luxo, dos anos 40, 50, ficou abandonado há muito tempo, o movimento ocupou. Hoje em dia, o movimento comprou esse prédio, reformou, e ele é hoje o Residencial Cambridge.
De fato, a especulação imobiliária no centro de São Paulo, área onde o MSTC atua, e a abertura de espaço para indústrias e empreiteiras que constroem empreendimentos visando o aluguel tem afastado moradores da região central e transformado o centro da cidade em um lugar deserto.
Vai para Buenos Aires. Rua Flórida, aqueles lugares no centro. É um lugar de vida. Da meia-noite está lotado de gente. E não é gente que vem de fora. São os moradores dali, do centro. A gente transformou o centro da cidade [de São Paulo] num lugar fantasmagórico, e a tendência é continuar. Porque todos os prédios que estão subindo no centro da cidade são de Airbnb, são prédios de empresários. Não é moradia social.
O cineasta vai ainda mais longe, e afirma que o direito constitucional que todo o cidadão tem direito à moradia foi subvertido, visando assim, alimentar as próprias empreiteiras e o sistema do aluguel. Sistema este que enriquece uma pequena parcela da população que vive dos rendimentos provenientes das moradias alugadas. Segundo Magalhães, se essa questão fosse cortada da equação, o preço das residências no centro de São Paulo reduziria drasticamente, como ele ilustra utilizando o Hotel Cambridge como exemplo.

Fachada do prédio da Ocupação Nove de Julho – Foto: Reprodução – Google Street View
Foto: Reprodução - Google Street View
O valor do preço dos apartamentos, como não tem o patrão, o dono da empreiteira, eles caem até 60%, 70% do valor. Porque esse é o problema. A gente tem que sempre pagar alguém que mora lá em Miami, que está sentado lá olhando para a praia, que não trabalha. Porque ele é um herdeiro. Por isso que as coisas são tão caras no mundo
As ocupações, além de atender aos moradores, também desempenham um papel benéfico para a cidade. Ao redor dos prédios surge uma rede de comércio, movimentando a economia. Dentro da Ocupação Nove de Julho o atendimento à população é completo, com assistentes sociais, e inclusive assistentes jurídicos, uma vez que muitas pessoas chegam lá ainda casadas com antigos parceiros, o que acaba complicando o acesso dessas pessoas à benefícios como o Minha Casa Minha vida.

Cena de show na quadra da Ocupação – Foto: reprodução Facebook
Foto: reprodução Facebook
Assim, as ocupações desempenham um papel fundamental no combate à extrema pobreza no centro de São Paulo. Dentro de ocupações como a Nove de julho, existem regras de convivência e organização que os residentes precisam cumprir, mantendo assim a ordem e propiciando para essas pessoas um ambiente organizado, limpo e digno. O prédio conta ainda com a cozinha da Nove de Julho, restaurante que inclusive já serviu comida na Bienal, e também uma galeria de arte no subsolo que já recebeu exposições que foram avaliadas em até R$ 6 milhões. Existem também projetos na Ocupação envolvendo escolas de elite em São Paulo onde os alunos vão até o prédio e desenvolvem atividades acadêmicas.
Todas essas medidas são fundamentais, pois não apenas prestam assistência para os residentes da Ocupação, mas desenvolvem um papel importante em integrar essas pessoas na sociedade para que este seja, não só um caminho de ajuda, mas uma das soluções para a extrema pobreza na cidade de São Paulo.