Catadores enfrentam baixos salários, falta de apoio público e preconceito, apesar de seu papel essencial na sustentabilidade urbana
Em qualquer lugar por onde um indivíduo passa, há um detalhe que atravessa o cotidiano de forma corriqueira pela percepção — especialmente para os moradores de grandes cidades: o lixo. Seja espalhado pelo chão ao longo das vias públicas, sejam as lixeiras transbordando a cada alguns quarteirões, os resíduos gerados no dia a dia passam tão despercebidos que ocupam o segundo, quando não o terceiro plano do hábito humano. Isso porque, agindo diante dos olhos de todos, mas ainda assim ignorados, estão os catadores e garis — agentes fundamentais para a construção de comunidades sustentáveis, embora frequentemente negligenciados pelo Estado e pela própria sociedade.
A principal diferença entre catadores e garis está na atividade que desempenham. Os garis são responsáveis pela limpeza das vias públicas, incluindo a coleta de resíduos e o varrimento das ruas. Eles trabalham de maneira formal, geralmente como funcionários públicos ou terceirizados. Já os catadores são aqueles que coletam e selecionam materiais recicláveis descartados pela população, com o objetivo de reaproveitá-los ou vendê-los para a indústria. Esses profissionais, embora muitas vezes considerados invisíveis aos olhos da sociedade, desempenham um papel essencial no cuidado com o lixo das cidades.
Apesar da importância de todos os agentes responsáveis pela limpeza de uma sociedade ser inquestionável, uma classe se destaca por, além de tudo, impactar diretamente o bem-estar do meio ambiente: os catadores de recicláveis. De acordo com um estudo encomendado pela Green Eletron à consultoria ACV Brasil, a reciclagem de 81,8 toneladas de resíduos coletados em 2020 evitou a emissão de 145 toneladas de CO₂ — o equivalente às emissões anuais de 23 pessoas no Brasil. Ainda assim, em 2023, o país reciclou apenas 4% dos materiais descartados, segundo estudo da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema) com base em dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Mesmo reconhecidos pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010) como agentes fundamentais da gestão de resíduos, muitos catadores ainda enfrentam condições precárias de trabalho, baixa remuneração e ausência de políticas públicas efetivas.
Reconhecimento na lei, descaso na prática
A professora Giovana Tommaso, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, afirma que a atuação de catadores e garis é peça-chave para o funcionamento do sistema de gestão de resíduos sólidos urbanos, conforme estipulado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). SeguUSPndo ela, esses profissionais contribuem diretamente para a redução do volume de resíduos enviados de forma inadequada aos aterros sanitários — o que aumenta a vida útil dessas estruturas e diminui a poluição do solo, do ar e da água.
A legislação brasileira reconhece os catadores como parte da responsabilidade compartilhada pela gestão dos resíduos recicláveis e incentiva a formação de cooperativas. Porém, essa valorização legal não se traduz, na prática, em estrutura e apoio suficientes. Tommaso ressalta que os catadores também desempenham um papel essencial na logística reversa, levando materiais recicláveis de volta à indústria, ainda que operem, muitas vezes, em condições insalubres e com baixa remuneração.
Segundo ela, o reconhecimento desses profissionais como agentes ambientais só terá efeito real se vier acompanhado de educação ambiental desde a base. “A sociedade só vai respeitá-los se entender, desde cedo, a importância do trabalho que realizam”. Isso envolve desde a separação correta do lixo até o apoio político à inclusão dos catadores na cadeia formal de gestão de resíduos.
Por fim, a professora defende que tanto a engenharia ambiental quanto o planejamento urbano devem ser articulados para garantir cidades mais justas. Isso envolve investimentos em educação, localização estratégica das cooperativas e políticas públicas que assegurem a participação ativa desses profissionais nos planos municipais de gestão de resíduos sólidos.
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A realidade das cooperativas: estrutura mínima, desafios máximos
As administradoras da cooperativa Recifavela, Josimeire e Lilian do Nascimento, relatam que, apesar de estarem conveniadas à prefeitura há mais de 14 anos, a realidade ainda é de insegurança e instabilidade. Com uma equipe de 28 pessoas, a cooperativa mantém uma estrutura mínima para operar, mas enfrenta sérios entraves burocráticos, baixa remuneração e ausência de diálogo contínuo com o poder público.
Com a extinção de órgãos como a Anlurb e a falta de continuidade em projetos, como os convênios com a FIESP e a FESP, as cooperativas ficaram ainda mais vulneráveis. “Começam um programa, colocam um técnico aqui dentro, ajudam com documentação… e depois somem. A cooperativa fica jogada”, desabafa Lilian. A prefeitura, segundo elas, apenas “faz o mínimo” — como o pagamento do aluguel e o fornecimento de EPIs — e não reconhece o trabalho como uma prestação de serviço essencial.
Além disso, o modelo de remuneração é visto como injusto: não há pagamento por quilo coletado, como ocorre em municípios como Campinas, o que dificulta a sobrevivência das cooperativas com os valores atuais dos recicláveis. “No fim do mês, todo mundo fecha no vermelho”, diz Josimeire. Segundo ela, o material coletado não cobre os custos operacionais e, muitas vezes, as cooperativas ainda enfrentam ações trabalhistas por não conseguirem pagar o mínimo necessário.
A falta de valorização também se reflete nas relações com a iniciativa privada. As gestoras denunciam que empresas raramente negociam diretamente com as cooperativas, preferindo intermediários, como startups, o que reduz drasticamente os ganhos dos catadores. “O PET que sai da empresa a R$10 chega aqui a R$3. Já passou por tantas mãos que a gente só recebe a sobra”, afirmam.
Trabalho que transforma vidas, mas que ainda enfrenta preconceito
Marlene Aparecida, catadora da Recifavela há cerca de 12 anos, conta que encontrou na cooperativa a primeira oportunidade após um momento difícil da vida: o falecimento da mãe e a falta de emprego. “Aqui se abriram portas para mim. Foi o meu primeiro lugar de trabalho”.
Ela já passou por praticamente todos os setores da cooperativa: triagem, coleta e organização dos materiais. No entanto, relata que o reconhecimento ainda é parcial. Apesar de avanços, como o aumento da consciência ambiental por parte da sociedade, o preconceito persiste: “No começo, minha própria irmã não separava lixo. Depois que viu o meu trabalho, mudou. Hoje ela separa e até convenceu os vizinhos”.
Um dos principais desafios, segundo Aparecida, é a falta de conscientização da população sobre a separação adequada do lixo. “Vem de tudo misturado: fralda, fezes de animal, até cachorro morto. Outro dia, uma colega se cortou com um espeto de churrasco.” Ela defende campanhas públicas de educação ambiental, feitas pelo poder público, e lamenta que, em mais de uma década de trabalho, nunca tenha visto uma campanha oficial chegar à sua comunidade.
Apesar de tudo, Aparecida não desanima. “Eu tenho orgulho de ser catadora. Estou construindo minha casa, meu amigo comprou uma moto… É o nosso esforço, é cuidar do planeta. É uma boa causa.” Ela completa, emocionada: “É pra me chamar de catadora, eu até gosto. Porque, antigamente, não era bem vista essa profissão, né? Agora eu tenho até orgulho também.”