De publicidade a internet: como adultização afeta desenvolvimento de crianças? - Revista Esquinas

De publicidade a internet: como adultização afeta desenvolvimento de crianças?

Por Julia Tortoriello e Lucas Abdallah : fevereiro 6, 2024

“A 'adultização infantil' ultrapassa o impacto apenas no desenvolvimento cognitivo." Foto: Andrea Piacquadio/Pexels

A publicidade infantil se modificou ao longo dos anos, com mais regramentos e barreiras, fazendo com que as campanhas publicitárias se adaptassem aos tempos atuais

A publicidade infantil sempre tomou conta de diversos intervalos comerciais, principalmente após a década de 80, fazendo com que conteúdos infanto-publicitários dominassem o mercado. Entretanto, a ascensão dessa forma de marketing gerou, e ainda gera, debates. Será que o público infantil possui um entendimento suficiente para saber se realmente gostariam de ter os produtos oferecidos ou se estão apenas sendo manipulados pelas propagandas? 

Além disso, a veiculação dessas publicidades ao longo dos anos se expandiu, não se mantendo apenas nas grandes redes televisivas, como se espalhando para a internet, a partir dos anos 2000.  

Regulamentação publicitária: a criança também é consumidora?

O marketing infantil feito por grandes empresas foi proibido no Brasil pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) em 2014, com o intuito de proteger os interesses das crianças em relação ao consumo.


Por ser um público com grande influência nas estratégias de marketing, durante os intervalos das programações passadas na TV eram exibidos comerciais de produtos infantis, como brinquedos, roupas e alimentos que despertam desejo nas crianças para adquirir o que estava sendo apresentado. A adesão que esse meio de comunicação carregava fazia com que as crianças passassem em média 5 horas e 35 minutos em frente à televisão, segundo uma pesquisa do Painel Nacional de Televisão publicada no site “Criança e Consumo”.

Fato é que, nas publicidades direcionadas a esse público, marcas com grande apelo popular geralmente caracterizam a sua comunicação mercadológica com estratégias próprias para persuadir a criança como: uso da linguagem infantil, efeitos especiais, músicas infantis, cores vibrantes e outros recursos estéticos que atraem a atenção daqueles que consomem programação direcionada aquela faixa etária.

As campanhas infantis ficaram abertas para a interpretação do público, entretanto, parte da população afirma que as campanhas podem ser de cunho persuasivo com o objetivo final de criar um desejo de consumo, se aproveitando da hiper vulnerabilidade das crianças.

O professor de Publicidade e Propaganda Claudio Luiz Cecim Abraão Filho, da Faculdade Cásper Líbero, ao discutir sobre a temática, exemplifica esse aproveitamento da vulnerabilidade infantil com um comercial brasileiro famoso da marca Caloi, especializada na produção de bicicletas: “Para influenciar o público, era mostrado uma conversa entre crianças dizendo: ‘Nesse Natal, não esqueça de escrever um monte de bilhetinhos pedindo uma Caloi para os seus pais’, o que fez a vida dos responsáveis virarem um ‘inferno’, com milhões de bilhetinhos; mas, esse é um tipo de prática que já passou, não se pode ter esse incentivo direto à criança.”

Segundo o Código de Defesa do Consumidor, não é possível realizar publicidade de produtos direcionados ao público infantil, no entanto, para que esse segmento não fira tais normas e legislações, as propagandas devem ser direcionadas aos responsáveis, despertando neles a necessidade de adquirir os serviços ou produtos para suas crianças.

A internet e a migração publicitária 

Desde 1995 a internet está inserida no dia a dia do brasileiro, fato que fez com que toda população se adaptasse a maneira mais prática e tecnológica de viver. Inicialmente a banda larga no país era lenta e não eram muitas pessoas que possuíam acesso para tal, entretanto, ao longo dos anos essa se tornou mais rápida e acessível, se espalhando por todo país. Portanto, atualmente as propagandas que eram feitas nas TV´s aberta e fechada migraram para o ciberespaço carregando consigo mudanças consideráveis.

Segundo o professor de Relações Públicas Daniel Dubosselard Zimmermann, da Faculdade Cásper Líbero, ao longo dos anos, houveram mudanças na maneira de se fazer publicidade infantil:

“A mudança se deu no formato, e não na estrutura. Por exemplo, a propaganda infantil continua sendo feita, só que em decorrência da internet há influenciadores adultos e mirins fazendo propaganda, ou seja, a grande mudança, na verdade, é no formato. Deixa de ser a propaganda que conhecemos na TV que vai fazer a criança obrigar o pai a comprar o produto para passar a ter uma outra forma.” 

A nova aparência das marcas infantojuvenis é sempre a que mais atrai a atenção do público, ou seja, agora são feitas campanhas com o que o público quer ouvir e ver. Mesmo com algumas críticas da nova geração, afirmando que atualmente as marcas “forçam a barra” demais para se tornarem “descoladas” entre crianças e adolescentes, as grandes empresas sempre tentam criar trends para que assim seu produto, seja cada vez mais vendido; Cecim Abraão então, explica sobre a tão procurada “receita para vender” que as marcas querem mostrar para crianças: 

“Eu diria que não tem uma técnica que é garantido que vai dar certo. O que existe é uma espécie de método ou um processo que envolve você acompanhar o que que as pessoas estão fazendo, o que está na pauta da conversa dessas pessoas para chamar atenção.” 

A publicidade infantil e o aumento da adultização

O formato não foi a única mudança feita dentro do marketing geral e infantil devido a internet, as tendências de consumo e sociabilidade também foram modificadas ao longo dos anos e aplicadas entre adultos e crianças rapidamente. Nos dias de hoje, o marketing está ligado a todos os tipos de redes sociais, e seus representantes atuais são os influencers. Nesse sentido, Zimmermann compara o controle dos pais sob os filhos na TV e na internet, “na TV os pais ainda tinham certo controle no que a criança assistia. Na internet, por mais que exista a COPPA, muitas das coisas que os pais liberam estão registradas como ‘para crianças’. Então uma ‘blogueirinha infantil’ ainda vai ter um discurso todo publicizado.”

Zimmermann explica ainda que uma das maiores consequências da publicidade infantil no ambiente digital é a adultização:

“Já é provado que nós, seres humanos, temos idades para aprender as coisas, e quando se pula o aprendizado ou acelera o amadurecimento da criança por causa deste tipo de informação, ela se torna imatura. Ou seja, ela vai ter fisicamente uma cara de adulto, mas ela não vai saber lidar com os problemas de um adulto, porque cognitivamente ela não desenvolveu o raciocínio suficiente para ter a maturidade que a aparência física dela vai proporcionar.”

Portanto, a publicidade infantil, independente do seu meio de transmissão, provoca consequências psicológicas e fisiológicas nas crianças. “A ‘adultização infantil’ ultrapassa o impacto apenas no desenvolvimento cognitivo. É falar do modo como as crianças estão sendo ensinadas sobre como devem ser ao longo da vida”, afirma o psicanalista clínico Gabriel Gonçalves Guimarães.

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A adultização 

A “adultização” ocorre quando se acelera o desenvolvimento da criança, ou seja, o termo é utilizado quando há uma adoção de comportamentos não condizentes com a idade atual do indivíduo. Segundo Jean Piaget, psicólogo suíço do século XX, os estágios da infância são essenciais para a formação do ser humano.

Segundo as fontes entrevistadas nessa reportagem, esse processo possui consequências quando se trata da vida de uma criança na internet, sendo as principais:

– Comportamental: quando a criança, por influência de conteúdo das redes sociais, começa a agir como uma pessoa adulta.

– Fisicamente: quando a criança deseja se submeter a procedimentos estéticos ou faz o uso excessivo de maquiagem e academia por vontade de se parecer com alguma pessoa adulta que admira na internet.

– Psicológica: quando a criança quer restringir pensamentos “infantis” e se baseia em pensamento de pessoas adultas para colocar no lugar de seus próprios

Os acontecimentos da adultização infantil causam inseguranças, problemas no desenvolvimento cognitivo e sociais, e podem levá-las a serem sexualizadas dentro de uma sociedade mal estruturada. 

Um dos casos mais conhecidos na mídia brasileira é o de Gabriela Abreu Severino, mais conhecida como Melody. A cantora iniciou sua carreira em 2015, no Facebook, com o lançamento da música “Fale De mim”. Após o sucesso, Melody, com 8 anos na época, passou a ser sexualizada, como uma forma de tentar se mostrar madura e adulta para a sua idade. 

Com o avanço da internet e o advento de novas redes sociais, como o TikTok, muitas crianças passam pelo mesmo processo que a cantora, como uma tentativa de se adequarem ao padrão adulto, em busca de seguidores e likes.

Como evitar esse fenômeno, que é influenciado pelas redes sociais? 

Existem alguns “mini-blogueiros” que, com o acompanhamento dos pais, conseguem sair ilesos do fenômeno da adultização. Para isso, existem cuidados que devem ser tomados antes de publicar os vídeos de menores de idade na internet. 

Iara Cristina Braun, mãe de Marcelo e Taila, que somam mais de 1 milhão de seguidores em suas redes, conta como funciona a sua rotina de cuidados antes de postar os vídeos de seus filhos:

“A gente toma muito cuidado com o que vai postar. Então, por exemplo, quando a criança está comendo, a gente não posta. Dificilmente vocês vão ver um vídeo com o Marcelo e a Taila comendo. Às vezes a gente está fazendo um vídeo e eu o confiro várias vezes o modo que eles estão comendo, o modo que eles estão agindo, porque as pessoas vêem maldade em tudo. Outro exemplo é a roupa, sempre os dois com roupa. Não gosto, também, de roupa que adultize crianças, na minha visão, tem que ser criança e tem que se vestir como criança. Eu falo, deixa ser criança, uma hora eles vão crescer e amadurecer. Para mim, quando você adultiza uma criança é pior ainda, chama mais atenção ainda para as pessoas que têm maldade.”


Joyce Vianna, mãe de Liviana, mais uma queridinha das redes sociais, também compartilha quais são os seus cuidados na hora de mostrar sua filha no Instagram e TikTok:

“Quando eu entrei no mundo da internet eu fiz um curso que me ajudou muito com essa questão. Era voltado para o lado infantil e ali me apresentaram todos os riscos que teriam, os cuidados que eu deveria tomar. Eu sigo esses ensinamentos desde o começo até hoje. Tomar cuidado com a roupinha que vai aparecer, nunca aparecer sem a parte de cima da roupa, não deixar aparecer shorts muito curto. É legal que ela já está começando a entender um pouquinho sobre o que pode e o que não pode, também por conta da gente ter esse cuidado com ela. Tento também não expor ela de maneira negativa, não gosto de publicar ela chorando, por exemplo. A gente faz bastante conteúdo de cuidado com o cabelo, então no banho também eu tomo cuidado com ela, sempre de maiô, até aqueles de manga comprida. Mas sabemos que mesmo tomando esses cuidados, a gente ainda corre risco.”


Ambas as mães explicam também que, com o objetivo de não deixar a internet influenciar no crescimento dos filhos, as crianças tem tempo limitado de contato com as telas e sempre com conteúdo previamente aceito pelos seus responsáveis, assim ainda sobra tempo para o estudo, alimentação e a utilização da imaginação.

“A autonomia na rede deve ser concedida gradualmente, obedecendo o amadurecimento do indivíduo e sua capacidade de questionamento e discernimento a despeito da habilidade que estes jovens demonstram em lidar com a tecnologia”, afirma a psicóloga clínica Isamarta de Vasconcellos Souza, ao falar sobre como a internet pode ser uma válvula de aumento da adultização e como o controle desse meio de comunicação para as crianças pode evitar isso.

Entretanto, ela ressalta que as crianças e pré-adolescentes não devem ser privados totalmente das telas, tendo em vista que nasceram e viverão em uma era digital, eles devem ser apenas protegidos de conteúdos que possam afetar o seu crescimento. 

Editado por Mariana Ribeiro

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