'Administração da miséria': o olhar do Judiciário sobre crianças acolhidas pelo Estado - Revista Esquinas

‘Administração da miséria’: o olhar do Judiciário sobre crianças acolhidas pelo Estado

Por Amanda Donola, Giovanna Rodrigues, João Pedro Costa Rodrigues, Luca Uras e Samuel Kyriazi : outubro 1, 2024

“Eles podem ter entrado aqui com 12 anos, não tem problema, mas boa parte deles, você não vai conseguir tirar do SAICA. São os filhos do SAICA”, comenta Muñoz. Foto: Rogério Machado/SEJUF

Alberto Muñoz e Max Figueiredo, da Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro; discutem vulnerabilidade de crianças que fazem parte do SAICA

Diferente do que se pensa, a maioria das crianças e adolescentes institucionalizados não são órfãos, mas precisam ser acolhidos por estarem em situação de risco no ambiente da família de origem. Os motivos podem ser vários. “Abandono, maus tratos, violência e violência sexual”, revela Heitor Beranger, diretor da Casa Lar Bethel, que fica em Sorocaba, interior de São Paulo.

“Hoje, a maioria das crianças [acolhidas] possuem lares desestruturados. O pai se perdeu, está no sistema prisional, ou então morreu, vítima da criminalidade, e a mãe, também vítima do uso de drogas e entorpecentes, não dá conta de cuidar das crianças”, completa o diretor.

Por onde chegam as denúncias? crianças

As autoridades são alertadas dos jovens em situação de vulnerabilidade quase sempre por meio de denúncias encaminhadas ao Ministério Público. Elas podem vir do Conselho Tutelar, da escola, do posto de saúde ou da comunidade. São crianças pequenas deixadas sozinhas em casa por muitas horas pela mãe que sai para trabalhar, ou cuja mãe é dependente química, e o pai, quando sequer está no registro, é ausente. O MP abre um processo para entender a situação do jovem e, enquanto este corre, o encaminha às instituições de acolhimento.

Varas de Infância e Juventude

Por não caber a essas varas o trâmite de uma adoção, elas têm como objetivo retornar crianças e adolescentes às suas famílias, seja de origem (geralmente os genitores) ou extensa (compreendida por tios, avós, primos etc) quando estas não apresentarem mais nenhum risco iminente ao menor. O processo de Destituição do Poder Familiar, ou seja, a perda de direitos da família sobre o indivíduo, só é aberto em último caso, quando for constatado que a volta deste para a família biológica seria prejudicial a seu desenvolvimento e bem-estar.

Com isso, o Ministério Público mapeia quais são as principais demandas da criança em matéria de saúde mental, educação e estímulos variados. Isto é chamado de primeira ecologia. Contudo, o trabalho se estende à família do acolhido, a fim de tornar o ambiente hostil do qual o menor foi retirado em um ambiente propício para a convivência familiar e adequado às necessidades daquele cidadão. Portanto, desde o momento que o jovem é acolhido, já se dá início ao movimento de desacolhê-lo, sempre tendo como prioridade a reintegração familiar.

Por esta razão, é feito um estudo social da família, que em geral está em situação de vulnerabilidade, e assim procura-se entender como ajudar não apenas o institucionalizado, como sua família também, através de programas sociais, como o Cadúnico (Cadastro Único para Programas Sociais), oferta de opções de centros de atividades sócio-culturais no contraturno escolar, como os CCAs (Centro para Crianças e Adolescentes) e até mesmo tratamentos psicológicos e psiquiátricos, quando necessários, pelo CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Este movimento é chamado de segunda ecologia.

Essas necessidades são entendidas por meio de uma grande audiência, denominada Audiência Concentrada, que tem participação do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos órgãos de saúde, educação, assistência social, do setor técnico da Vara (composto por psicólogos e assistentes sociais) e do SAICA (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes). Muitas vezes uma única reunião tem mais de 30 órgãos participantes.

Serviço de acolhimento crianças

Neste momento, o SAICA, lugar onde são destinados a maioria dos menores, apresenta um parecer sobre a possibilidade de desacolhimento, seja por meio do retorno à família de origem ou por intermédio da família extensa, que passa a ser responsável pelo menor em questão.

Na capital de São Paulo, essas casas não podem abrigar mais do que 15 crianças, mas no interior há casos de até 60 abrigados morando sob o mesmo teto. Para bebês de até 2 anos de idade, há, a possibilidade de encontrar uma família para acolher durante um período, o chamado SAF, até que retornem para a família de origem ou para adoção.

No caso de adolescentes mais velhos, próximos dos 18 anos, alguns desses jovens são colocados em Casas Lares, que fazem um trabalho de profissionalização visando o desacolhimento com autonomia. Por último, há opções como o projeto do apadrinhamento afetivo, que acontece na Vara de Santo Amaro.

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Contudo, alguns desses menores acolhidos pelo Estado não podem ser reintegrados à família, e não encontram famílias substitutas, uma vez que perfil das crianças que costumam ser adotadas se enquadra na faixa etária dos 0 aos 7 anos. A situação ainda piora para os meninos, jovens negros ou com algum tipo de deficiência. São os casos chamados crônicos. É necessário começar a pensar na vida fora do abrigo do Estado.

“Essa fase não tem uma data certa para começar, mas começa quando a angústia surge nesse adolescente, nesse acolhido, que aos 18 anos é literalmente pé na bunda. Abre a porta e ele vai embora”, explica o juiz Muñoz.

Entre os institucionalizados, há uma confusão emocional: aquela é a única referência de família que tiveram. Mas são as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente.

“Eles podem ter entrado aqui com 12 anos, não tem problema, mas boa parte deles, você não vai conseguir tirar do SAICA. E às vezes eles começaram com 2 anos e estão com 16. São os filhos do SAICA.”

O juiz ainda comenta sobre como apesar de os menores serem alocados em bons SAICAs, existem demandas que não conseguem ser supridas, como o estabelecimento de vínculos com os adultos de referência e colegas de acolhimento.

Casa Lar Betel

Por outro lado, a Casa Lar Bethel conseguiu encontrar uma solução para este problema: após uma tragédia envolvendo a fuga de um dos institucionalizados, seguida da morte do jovem, o diretor institucional passou a procurar alternativas para evitar que situações semelhantes voltassem a ocorrer.

Foi então que Beranger encontrou uma instituição de acolhimento espanhola que funcionava com o conceito de mães sociais, que são trabalhadoras dessas instituições que se dedicam a atender as demandas emocionais e afetivas das crianças e adolescentes abrigados. Heitor entrou em contato com os responsáveis pelo abrigo espanhol, que vieram ao Brasil visitar Bethel e ajudar o diretor a implementar essa iniciativa na Casa Lar que cuida. O projeto deu tão certo que o Lar Bethel virou referência para outras Casas Lares no Brasil.

Além disso, se antes a orientação era o não estabelecimento de vínculos, para que nos casos de adoção ou saída por maioridade não houvesse sofrimento por nenhuma das partes, agora há o entendimento que o estabelecimento de vínculos é necessário e saudável. No caso da Casa Lar sorocabana, ele não apenas acontece com as mães sociais, mas se estende a outros funcionários do abrigo, incluindo o diretor.

“Vez ou outra eu recebo uma ligação, [os antigos acolhidos] vêm para Bethel com a família, para dizer “olha eu tô casado, tenho filhos e agora eu tô pensando em comprar uma casa. O que que o senhor acha?” E vêm perguntar para a gente. Isso é muito legal, a gente percebe que existe uma relação familiar, eles têm essa consideração”, conta Heitor.

Por outro lado, é visível que o tempo de institucionalização causa defasagens de autonomia perceptíveis nas crianças e adolescentes, que acabam ficando alheias aos conhecimentos comuns que deveriam ser seu repertório em tal fase. Cati Wiliane, de 41 anos, relembra que depois que saiu do abrigo teve dificuldade em lidar com algumas questões da vida adulta.

“O mundo lá fora para gente não era igual ao mundo que foi o lar, tanto que quando eu saí do lar, demorei para conquistar minhas coisas, a entender que não tinha ninguém para pagar minhas contas.”

O promotor Max Figueiredo, que também faz parte da Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro, acrescenta que já teve conversas com adolescentes institucionalizados em visitas de fiscalização, onde percebeu o despreparo desses jovens para enfrentar a vida adulta ao sair do abrigo aos 18 anos.

“Você bota ele pra morar sozinho, mas “você sabe quanto custa um aluguel?” “não.” “você sabe quanto custa um saco de arroz?” eles não têm ideia.”

Dr. Muñoz complementa.

“Você conversa com eles e pergunta: “o que que você vai fazer?” “Ah, eu vou trabalhar, eu vou comprar minha casa” E você não vai dizer assim: “cara, você não vai comprar sua casa.” Figueiredo completa: “Você pergunta: “O que você vai ser?” “eu vou ser um astronauta ou lixeiro” “Eu quero ser neurologista ou varredor de rua” É quase fantástico, é quase infantil.”

Adoção Tardia

Este é um problema que não é apontado somente pelas pessoas que trabalham diretamente com esses jovens, mas também por atuantes da causa, como é o caso da influenciadora digital Kandre Requião, mãe de Bernardo, de doze anos, que veio por meio da adoção, e Liv de cinco, que veio por via biológica e utiliza o Instagram para dar visibilidade a causa da adoção, em especial a adoção tardia

“Eles vivem dentro daquela realidade, presos ali dentro do abrigo, onde tem uma pessoa que faz a comida, eles não têm muito contato com o mundo de fora, somente quando vão para a escola e voltam, né.” Aponta Kandre.

O trabalho feito nas Casas Lares busca alinhar os adolescentes para ingressar em repúblicas jovens ao completar 18 anos. Essa iniciativa já não diz respeito à Vara da Infância e Juventude, mas à Secretaria de Assistência Social do estado, o programa promove a autogestão de uma casa para jovens de 18 a 21 anos.

Lea Regina, que viveu dos 5 aos 18 anos sob os cuidados da Sociedade Espírita Cabaninha de Antonio de Aquino, em Itu, conta sobre sua experiência ao atingir a maioridade:

“Essa transição dos 18 foi muito positiva, na minha opinião, mas tiveram irmãos meus que não conseguiram vencer e acabaram tendo que viver com questões de drogas, de bebida, tudo quanto é tipo de problema”.

Apesar de sentir falta do acolhimento que tinha no abrigo, Lea é grata pelas oportunidades que a república lhe deu. “Não é acolhedor a palavra certa, mas fortaleceu. Saí com emprego, entendeu? Eu saí com o emprego fixo, saí com segundo grau completo.” O apadrinhamento afetivo também é de grande ajuda nesses casos, muitas vezes são os padrinhos que oferecem suporte aos jovens depois dos 18 anos.

Editado por Clarissa Olivia

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