Entregador que viralizou nas redes sociais conta como sua situação de trabalho tem sido afetada
“Antes da pandemia, a gente já passava por situações de extrema dificuldade. Com ela isso se intensificou, e depois que for embora a gente vai continuar passando pelas coisas que a gente sempre passou”. O depoimento é de Paulo Lima, 31 anos, entregador de aplicativos há 10 meses e motoboy há 11 anos. Ele relata como o descaso das plataformas de entrega em meio à crise sanitária agravou as condições de trabalho que já eram ruins.
Paulo conta que no dia 21 de março teve um problema com o pneu de sua moto e não conseguiu concluir um pedido. Então, contatou a UberEats, app pelo qual faria a entrega, e explicou a situação. Segundo ele, o aplicativo o mandou realizar o cancelamento, garantindo que não haveria problema. Entretanto, no dia seguinte, o motoboy acordou e percebeu que havia sido bloqueado da plataforma, sendo impedido de trabalhar. “Eu fiquei revoltado e já tinha passado por uma série de transtornos com os aplicativos. Agora, na pandemia, estou me arriscando, correndo o risco de trazer o vírus para dentro de casa e os ‘caras’ ainda me bloqueiam, sendo que falaram que não iam?”.
Disseram a ele que deveria visitar o atendimento presencial, que não está funcionando em função do isolamento. Tentou, então, mandar e-mails, mas sem resultado. Inconformado, Paulo chegou a visitar emissoras de televisão para realizar sua denúncia, mas foi somente por meio de colegas que conseguiu o contato do The Intercept. Dois dias depois, seu vídeo foi publicado no site do veículo e viralizou nas redes sociais. Apesar da repercussão, os aplicativos demoraram a tomar uma atitude.
“Até o momento que eu tinha feito o primeiro vídeo da denúncia que saiu no The Intercept e viralizou, eu ainda não tinha recebido nenhum equipamento [de segurança e higiene]. Mais de um mês para frente ainda não estavam distribuindo, começaram agora. O pessoal está me falando que já estão tendo alguns pontos por aí. Eles dão uma máscara, um vaso pequeno de álcool em gel para você passar na mão e é isso aí. Já passamos de 8 mil mortes e só estão dando máscara agora”, denuncia. No momento em que Paulo falou com ESQUINAS, esses eram os números oficiais. Hoje, segundo o Ministério da Saúde, já são mais de 19 mil óbitos pelo novo coronavírus.
O entregador conta que soube de colegas que foram infectados pelo vírus e tentaram receber um auxílio financeiro, mas não tiveram sucesso. Ele explica como funcionaria: “Se você for contaminado com a covid-19, você vai lá com o laudo e apresenta pra eles. Se o atendimento presencial não estiver fechado, eles vão fazer a soma do que você ganhou no último mês e vão te ajudar a arcar com os custos. Eu ouvi relatos de pessoas que pegaram [a doença] e não conseguiram receber o auxílio do aplicativo, mesmo com o laudo na mão.” A Uber, citada por Paulo como uma das plataformas que negaram o benefício, foi procurada por ESQUINAS, mas não respondeu até o momento desta publicação.
O motoboy disse que depois de seu vídeo ter sido divulgado, recebeu muitas ligações de companheiros contando histórias de ações de caridade dos clientes. Mas também escutou muitos comentários ruins, até mesmo de outros entregadores. “Tem pessoas do bem e do mal, tem pessoas que falaram comigo e tem pessoas que, se você olhar lá no vídeo do Intercept, estão me mandando ir pra Cuba, falando ‘desliga o aplicativo aí amigão e vai para Cuba se não está bom para você’”.
Paulo relata que maus-tratos são comuns em sua profissão e foram intensificados pelo temor do contágio. “O medo é válido, porque existe uma pandemia, mas é um medo em cima de um preconceito que já existia. Comigo já aconteceu de o cliente tratar mal, não chegar perto, acontece todo dia, toda hora. Mas vamos falar assim, se você tomar um tapa na cara hoje, vai doer e você vai reclamar para todo mundo. Se você tomar um tapa na cara amanhã, vai reclamar igual, mas se você passar um mês tomando tapa na cara, uma hora você vai falar ‘Ah, essa é minha vida’”.
Na visão do entregador, a crise do novo coronavírus chamou a atenção para os trabalhadores essenciais e suas demandas: “A pandemia afetou as pessoas. Agora é o momento de falar do que dói, mas já estava doendo. A gente já tinha uma dor e a pandemia intensificou ela. Agora existe uma atenção para quem está na rua. As pessoas querem falar com os entregadores, os médicos, policiais, bombeiros. O triste dessa situação é que quando essa pandemia terminar, o problema vai continuar e a atenção vai acabar”.