Apesar de parecer algo banal em meio ao cenário, a forma como as mulheres trabalham sua autoestima durante o processo de cura de um câncer é crucial para um tratamento próspero
O Brasil é um dos países em que o culto a um padrão estético inalcançável está impregnado na cultura. Se a pressão social pelo corpo perfeito já traz impactos preocupantes em pessoas consideradas saudáveis, quando se trata de um paciente com câncer, que enfrenta sérios efeitos colaterais aparentes, essa questão assume papel crucial.
Embora o temor pela vida seja um dos sentimentos mais fortes e dolorosos, existe um outro lado da doença: a dificuldade de lidar com a perda da vaidade, e, consequentemente, da autoestima. Além de precisar vencer uma batalha contra o próprio corpo, grande parte da população feminina que é diagnosticada com essa doença também acaba por abdicar desse lado pessoal e íntimo, afastando-se de sua identidade e amor próprio — o que abala ainda mais a sua força.
De acordo com o INCA (Instituto Nacional do Câncer), são esperados 704 mil novos casos de câncer no Brasil por ano. Dentre 100 mil mulheres no país, 44 podem ter um câncer de mama, sendo este o mais recorrente entre o grupo. Para Elizabeth Carnavalli, de 57 anos, diagnosticada com a doença na mama e curada em setembro de 2023, o medo da morte foi o que falou mais alto no primeiro momento. No entanto, ao longo do tratamento, teve que aprender a lidar com o seu novo “eu”.
“Quando eu recebi meu diagnóstico de câncer de mama, eu nem pensei na autoestima. A primeira coisa que você pensa é que você vai morrer – no meu caso, que não veria mais a minha filha”, conta.
“Eu me preparei psicologicamente para perder os cabelos. Tive que fazer uma mastectomia, então eu já sabia que eu ia perder a mama desde o começo do tratamento, o que me fez ficar um pouco mais relapsa com os cuidados de beleza, porque, na hora, isso não era o mais importante”, revela Elizabeth.
Assim como a entrevistada, a cantora Preta Gil, que ganhou destaque na mídia no começo de 2023 após o diagnóstico de câncer colorretal, que afeta o intestino, compartilha do mesmo sentimento: “Eu passei por uma sepsemia e quase morri. Lutei para que meu organismo respondesse aos medicamentos e ficasse bem. A autoestima é naturalmente colocada em segundo plano. Você enxerga que o mais importante é a sua saúde física, mental e espiritual. E a consequência dessa recuperação é abdicar da sua beleza física”, desabafa em entrevista de imprensa dias antes de uma nova internação.
A psicóloga Geise Nascimento Florence, pós-graduada em terapia cognitiva e comportamental, explica que ao receber o diagnóstico, a mulher passa por vários conflitos internos, que devem ser tratados com a ajuda de profissionais. “Essa não é uma doença que impacta somente o físico, como também afeta diretamente o psicológico da paciente, interferindo na sua autoestima, vaidade e relações com as pessoas mais próximas.”
Em alguns casos, a mulher, com vergonha, se afasta de pessoas mais próximas e adere ao isolamento social por conta da baixa autoestima.
Elde Bueno, coordenadora e voluntária do grupo de apoio de pacientes do Instituto Protea, que atua no tratamento do câncer de mama para mulheres de baixa renda, enxerga que “cada uma viverá sua jornada à própria maneira, mas é fato que com o diagnóstico passa a existir, também, uma nova mulher. A autoestima muda na medida em que a realidade muda – com novas emoções, sentimentos, dinâmicas de relações e mudanças no trabalho, é inevitável a transformação da visão de si mesma.
Quanto mais apoio, informação, orientação e cuidado essa mulher tiver, mais leve será para ela essa etapa de sua vida.” É importante que as pessoas ao redor da paciente saibam que a individualidade também precisa ser mantida: “nem todas gostam de lenços, nem todas usam peruca, nem todas retiram as mamas completas. É preciso ouvir mais para alinhar ações que as beneficiem.”
Dados preliminares levantados pelo Observatório de Oncologia de São Paulo apontam que a chance de um paciente com câncer desenvolver depressão varia entre 22% a 29%, e, nesses casos, o caminho para a cura é mais árduo e dificultoso. “Vários estudos referentes ao câncer comprovam que pacientes que participam de atendimento psicológico possuem um melhor ajustamento à doença, redução dos distúrbios emocionais, melhor adesão ao tratamento e diminuição dos sintomas adversos associados à quimioterapia, por exemplo”, esclarece a psicóloga.
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ONGs que transformam
Pensando nisso, outro projeto que atua para melhorar a relação das pacientes com a beleza é a ONG Cabelegria, fundada em 2013, e que realiza a doação de perucas para mulheres que perderam seus cabelos por ocorrência do tratamento de câncer.
“A grande maioria dos pacientes que entram em contato com a gente para a solicitação de uma peruca são pessoas que sentem muito com a queda de seus cabelos. Para essas pacientes a peruca vai além da autoestima, muitas vezes a peruca significa o resgate de uma vida social. Algumas param de sair, de ir na igreja ou no mercado por conta da careca e quando ganham a peruca voltam a seguir suas vidas normalmente”, explica Mariana Robrahn, fundadora da ONG.
Não são só os cabelos que ficam comprometidos, a pele pode ficar mais sensível, o peso pode diminuir ou aumentar bruscamente, pelos podem crescer em lugares não habituais, manchas podem surgir pelo corpo além de unhas ficarem mais fracas. Nesse momento, todo cuidado é pouco:
“As pacientes beneficiadas pelo Instituto Protea contam com um grupo de apoio que oferece, além de encontros presenciais quinzenais, acesso a outros recursos e atendimentos complementares ao tratamento como arteterapia, fisioterapia, nutrição, consultoria de imagem e estilo, aulas de maquiagem, micropigmentação, mindfulness, educação física, yoga e psicoterapia. Segundo relatos e as histórias que acompanhamos das pacientes, fortalecer suas habilidades socioemocionais e amparar as transformações de imagem e de vida que passam é um dos caminhos para que elas sigam confiantes em suas jornadas rumo à cura”, enfatiza Elde Bueno.
Apesar de parecer impossível, a cura – do corpo e da autoestima – é possível. Como explica Elizabeth Carnavalli, no final das contas, ter fé é a peça-chave para fomentar o amor próprio e, por consequência, vencer o câncer da melhor forma possível:
“É preciso manter o pensamento positivo e ter fé – em Deus, na sua religião, e o mais importante: ter fé no tratamento. A autoestima volta, você se adapta. Hoje eu tenho o cabelo curto, branco e estou gostando desse meu novo visual. Você vai se adaptando. O mais importante de tudo é a saúde. Esta vem em primeiro lugar, o resto se resolve com o tempo.”