A cidade de São Paulo é repleta das mais diversas culturas, que se espalham nos campos das artes, gastronomia, religião, festas e arquitetura
Diversos bairros da capital paulista são marcados pela presença de características da cultura dos imigrantes europeus e orientais, que outrora se concentraram na região. Mas, até que parte essa é a única história desses bairros?
Marcados pela vida boêmia, a festa da Achiropita, as lanternas japonesas e as gastronomias italiana e oriental, os bairros do Bixiga e da Liberdade parecem, à uma primeira vista, não apresentar raízes negras, mas se engana quem acredita nisso.
As raízes e a cultura negra no Bixiga
O bairro do Bixiga é um dos mais tradicionais de São Paulo. Localizado na região central, desde a rua Major Diogo às avenidas Nove de Julho e Brigadeiro Luís Antônio, o bairro ficou famoso pelas referências italianas, mas já foi um quilombo. O chamado “Saracura” era o quilombo da região, antes mesmo das referências europeias presentes no bairro. Saracura era nome do riacho que corria por ali e que hoje está soterrado. Durante escavações para a construção de um metrô na região, foi descoberto um sítio arqueológico quilombola de aproximadamente 280m². Foram encontrados louças, cerâmicas e até mesmo talheres, que comprovam a existência do Quilombo Saracura.
ESQUINAS entrevistou Adriana Terra, jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero, mestre em Estudos Culturais e doutoranda em Mudança Social pela USP. Durante sua pós-graduação, Terra estudou as relações de pertencimento no bairro do Bixiga e, há um ano, integra o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, que defende o legado do Quilombo do Saracura e a preservação do sítio arqueológico no local em que está sendo construída a Linha 6 do Metrô, no Bixiga. Adriana conta que pouco se sabe da influência negra na região, devido à atividade turística em memória dos italianos, que foi, e é, muito coberta pela mídia hegemônica, branca e burguesa.
A jornalista explica ainda que a sobreposição da cultura italiana se deu muito por conta da branquitude e de uma hierarquização racial. Terra diz que, passando pelo bairro, é possível notar diversas influências das culturas negras e nordestinas. “Uma conhecida recentemente escreveu: ‘tenho andado pelo Bixiga e é uma loucura que se convencionou entender o bairro como italiano, porque no dia a dia é totalmente perceptível que ele é um bairro negro’. E isso não está restrito ao Bixiga. Só se enxerga aquilo que se quer, e por muito tempo se enxergou apenas a imigração europeia em São Paulo, porque ela estava associada a uma ideia de ser melhor“.
Por mais que a cultura negra na região seja pouco lembrada, Adriana ressalta que ela foi muito importante para a construção do bairro, desde sua constituição física até a cultural:
“Eu acredito que existam duas coisas que são importantes nesse processo de reconhecer a influência da população negra no Bixiga. A primeira é mudar o olhar para o que se entende como patrimônio, e aí entramos na valorização do samba e das religiosidades afro-brasileiras ali, entramos na valorização dos modos de vida, dos jeitos de ocupar o espaço, morar, brincar, celebrar. A segunda é mudar o olhar para o patrimônio edificado mesmo, para as construções, que são sempre associadas a uma imigração europeia, mas que provavelmente têm contribuição também da população negra, em termos estéticos inclusive, o que vem sendo mais estudado. Então é preciso que se valorizem outros aspectos, se mostre a importância deles, e que ao mesmo tempo questione as identidades associadas ao que é valorizado.”
Patrícia, que também faz parte do projeto Mobiliza Saracura Vai-Vai, explica um pouco sobre o estudo arqueológico que está sendo feito na região. Em primeiro momento, são feitas algumas sondagens com uma “boca de lobo”. Em algumas varreduras, materiais arqueológicos foram encontrados e levados para o laboratório. Lá, eles são lavados, separados e nomeados. A partir desse material foi possível descobrir os locais apropriados para as escavações. O problema, segundo ela, é que as escavações começaram no período de chuvas, o que obrigou a equipe a suspender as pesquisas.
A cultura negra e seu legado na Liberdade
O bairro da Liberdade é muito conhecido em São Paulo por conta de sua grande influência da cultura oriental. A região é famosa por seus restaurantes, mercados e lojas que possuem todo tipo de produto chinês, japonês ou coreano. Mas pouco se fala sobre a verdadeira história da Liberdade e a influência da população negra no bairro. No século XIX, a região era conhecida como Bairro da Pólvora, por conta da Casa de Pólvora, criada em 1754. Além desse lugar, o bairro tinha outros dois pontos famosos: o Pelourinho e o Largo da Forca. O primeiro, era o local onde os escravos eram castigados e o segundo, onde os condenados à morte eram executados na forca. Foi nesta forca que aconteceu uma das manifestações mais marcantes da história do bairro e que deu origem ao nome que o conhecemos hoje.
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Em 20 de setembro de 1821, o soldado Francisco José das Chagas, conhecido popularmente como Chaguinhas, morreu enforcado no Largo da Forca, atual Praça da Liberdade, por liderar uma revolta em Santos contra o não recebimento de salários durante o serviço militar prestado à época do Império. Porém, a corda em que o soldado seria enforcado arrebentou três vezes, o que fez com que a população do bairro clamasse pela liberdade de Chaguinhas. Foi essa importante manifestação que deu ao bairro seu nome: Liberdade.
Outra marca das raízes negras no bairro é a Capela dos Aflitos, um antigo cemitério de ex-escravizados, indígenas e mortos por enforcamento. Foi lá que a escola de samba mais antiga da cidade, Lavapés, foi fundada por Madrinha Eunice, que hoje tem uma estátua próxima à estação de metrô Japão-Liberdade.
A cultura negra na região vai muito além dessas estruturas. Segundo historiadores, o bairro foi o primeiro a receber casas de negros que tinham sua libertação concedida durante os séculos XVIII e XIX. A região também sediou a Frente Negra Brasileira, fundada em 1931 e considerada a mais importante entidade do movimento negro na primeira metade do século XX. Ela reunia pessoas negras para lutar por seus direitos e contra o “preconceito de cor”, termo da época para racismo. Alguns dos temas defendidos ainda são pauta de movimentos atuais, como educação e maior participação política.
Vanessa Bortulucce, mestra em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas, Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas e professora da Faculdade Cásper Líbero, explica que essa ofuscação das raízes negras da Liberdade se deu justamente pela sobreposição da cultura japonesa. Ela situa que os principais símbolos, que são vistos logo na entrada do bairro, são de origem asiática e relembra que até o nome da estação de metrô, Japão-Liberdade, faz alusão a essa cultura.
A professora conta também que, mesmo com toda essa influência, muitas estruturas presentes na região remetem a história do povo negro que ali habitou:
“É muito importante lembrar que nesse mesmo bairro a gente tem a igreja dos enforcados e a Capela dos Aflitos. Nas intermediações, existem algumas intervenções nos muros e alguns grafites, inclusive um deles dizendo ‘lembre-se do Chaguinhas’. Então existem formas que as próprias pessoas encontraram de chamar atenção para a história negra do bairro.”
Ela reforça que o próprio nome do bairro, Liberdade, está muito mais relacionado a história do povo negro do que a influência oriental.